sexta-feira, 21 de junho de 2013

O coronel e o lobisomem

Carvalho, José Cândido. O coronel e o lobisomem. José Olympio Editora. Rio de Janeiro/RJ; 2007; 399 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
José Cândido Carvalho foi um advogado, jornalista e escritor brasileiro, nascido em Campos de Goytacazes, no Rio de Janeiro, e conhecido pela  obra O coronel e o lobisomem.
 
Dados da obra:
 
Lançado em 1964, é o segundo livro de José Cândido de Carvalho, sendo lançado em 1964. Conta a história do coronel Ponciano de Azeredo Furtado, membro da Guarda Nacional, de menino a herdeiro, de Mata-Cavalo (alusão à casa de Dom Casmurro) e Sobradinho, entre outras propriedades, a especulador de açúcar e cavaleiro quixotesco, além do amor por Esmeraldina. É narrado pelo próprio Coronel, de forma que é a sua visão dos acontecimentos.
 
Passagens:
 
Simeão deu todo poder de mando a Francisquinha, negra de confiança, vinda dos tempos apagados de meu avô rapazola. Pois digo que essa amizade calhava a contento. A velha sabia dar ordem na cozinha, governar sala e saleta. Morava no meio de um bando de negrinhas e afilhadas. Conhecedora da minha fama de maluco por perna, trancava todas elas nos compartimentos mais protegidos de tramela. Lacrava as portas com esta ponderação severista:
– Cuidado com o menino!
 
E aproveitei para dar um balanço no caso da pintada. Medi, ponderei e, ao perceber a pata da nefasta arranhar a janela, tratei de ganhar praça, sempre recuando em ordem, como competia a quem levava aprendizado militar. Bem guarnecida andava a parte dos fundos, onde a velha Francisquinha dormia trancada com suas agregadas. Onça por mais que fosse não ia chegar a recinto fechado. Certo dessa segurança, fui pedir asilo ao sótão de armas, compartimento reforçado, sortido de bacamartes e pólvora. Talvez que a carnicenta tivesse intenção, sei lá o que pensa cabeça de onça, de pernoitar na cadeira de meu descanso, agasalhada de chuva e vento. Se eu não tivesse preparo de coragem, talqualmente um Saturnino ou João Ramalho, saía no burro de acordar léguas de pasto. Sem gabolismo, digo e provo que procedi dentro da prudência e o resto da noite passei na vigília das armas. Madrugada rompida, canto do galo de fora, onça recolhida, deixei de velar a segurança do Sobradinho. E, ao abrir do café, soltei a língua viperina no lombo de todo mundo, tirante a velha Francisquinha, de meu especial respeito. Que marca de gente era essa que comia de meu feijão e bebia de minha água? Enfrentava eu dez braças de onça e ninguém para dizer coronel estou-aqui.
– Ninguém!
 
Encontrei o capitãozinho na lavagem, a cabeça empapada de sanativos. Mirou o dono com olho tristento de quem estivesse dizendo adeus-vou-embora, pedindo desculpas por tão grande desgosto. Digo que fiquei de coração quebrado e estive a ponto de verter lágrimas no peitinho dele. Ia fazer essa vergonha, retirar o galo da demanda, quando vi Sinhozinho em discussão ferrada no meio de um povaréu de boiadeiros. Não podia desmerecer da confiança do velho, pelo que mandei Antão Pereira deixar Vermelhinho por minha conta:
– Quero ter um particular com esta mimosura.
 
– Que é isso, Fonseca? A gente não caiu, homem de Deus. A gente só tropeçou.
Feiçãozinha triste, rosto desgastado, nem respondeu. Saí da rua do Gás roído de mágoa, contraído de nó de choro que sufocava a minha garganta. Em poder da moça teúda e manteúda deixei dois contos de réis. Era tudo o que restava de Mata-Cavalo.
 
Sem medo, peito estofado, cocei a garrucha e risquei, com a roseta, a barriga da mulinha de São Jorge. A danada, boca de seda, obedeceu a minha ordem. O luar caía a pino do alto do céu. Em pata de nuvem, mais por cima dos arvoredos do que um passarinho, comecei a galopar. Embaixo da sela passavam os banhados, os currais, tudo que não tinha mais serventia para quem ia travar luta mortal contra o pai de todas as maldades. Um clarão escorria de minha pessoa. Do lado do mar vinha vindo um canto de boniteza nunca ouvido. Devia ser o canto da madrugada que subia.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Antes do baile verde

Telles, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. Nova Fronteira. Rio de Janeiro/RJ; 1986; 208 páginas.
 
Breve relato da autora:

Lygia Fagundes Telles é uma escritora brasileira, que recebeu o Prémio Camões em 2005. É membro da Academia Paulista de Letras desde 1982, da Academia Brasileira de Letras desde 1985 e da Academia das Ciências de Lisboa desde 1987.

Dados da obra:

Reunião de narrativas escritas entre 1949 e 1969, Antes do baile verde é considerado por muitos críticos o livro de contos literariamente mais bem-sucedido de Lygia Fagundes Telles. As situações narradas são as mais diversas.

Passagens:

Eu sei. Mas para que serve? – insistiu. E apressando-se antes de ser interrompido: – Veja, Lorena, aqui na mesa este anjinho vale tanto quanto o peso de papel ou aquele cinzeiro sem cinza, quer dizer, não tem sentido nenhum. Quando olhamos para as coisas, quando tocamos nelas é que começam a viver como nós, muito mais importantes do que nós, porque continuam. O cinzeiro recebe a cinza e fica cinzeiro, o vidro pisa o papel e se impõe...
 
– Não, não adianta. – Colocou o anjo na mesa. E apertou os olhos molhados de lágrimas, de costas para ela e inclinado para o abajur. – Veja, Lorena, veja... Os objetos só têm sentido quando têm sentido, fora disso... Eles precisam ser olhados, manuseados. Como nós. Se ninguém me ama, viro uma coisa ainda mais triste do que essas, porque ando, falo, indo e vindo como uma sombra, vazio, sem cinza, o anjo sem anjo, fico aquela adaga ali fora do peito. Para que serve uma adaga fora do peito? – perguntou e tomou a adaga entre as mãos...
 
... As unhas de Francisca eram curtas, unhas de mãos eficientes, com uma discreta camada de esmalte incolor. Unhas e mãos de velha, incrível como as mãos envelheceram antes. Depois foram os cabelos. Podia ter reagido. Não reagiu. Parecia mesmo satisfeita em se entregar, pronto, agora vou ficar velha. E ficou...

... Tinha juventude. “Ju-ven-tu-de...” – murmurou, voltando o olhar mortiço em direção ao espelho. Ela adorava espelhos, dezenas de espelhos por toda a casa. Aquele ali então era o pior, aquele que apanhava o corpo inteiro, sem deixar escapar nada. Com ele aprendera que envelhecer é ficar fora de foco: os traços vão ficando imprecisos e o contorno do rosto acaba por se decompor como um pedaço de pão a se dissolver na água.

... Sentira-se um outro homem. Outro homem. Que anúncio usava essa frase? “Fiquei um outro homem”. O anúncio estava num bonde, devia ser de um xarope. Fazia tanto tempo. Saudade de andar de bonde, ir lendo os anúncios, os avisos tão cordiais, tão prudentes: “Espera até o bonde parar”. Tempo de prudência, tempo da consideração. Era bom deslizar pelas ruas desertas, cochilar naquele balanço para a direita, para a esquerda, como num berço...

Fixei-me nas nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter participado deles realmente. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, e ainda via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Intocável? Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos e aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma obscura irritação me fez sorrir.

O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltra-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte...

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Deslimites - Metáforas do Cotidiano


Damante, Juliana. Deslimites. Ed. Do Autor. Campinas /SP; 2012; 187 páginas.

Breve relato da autora:

Juliana Damante é jornalista e pós-graduada em Jornalismo Literário pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário.

Dados da obra:

Olhares a respeito de alguns segundos: parar e reparar. O livro traz um cotidiano de narrativas da vida real, histórias autobiográficas e visões de uma realidade rabiscada a partir de relatos mais humanos e sensíveis.

Passagens:

Terça é Feira. Enquanto as frutas estão novas e com gotículas da água que o feirante jogou por cima, para que os vegetais fiquem com ar de frescos e convidativos, os senhores e senhoras arrastam os carrinhos, de feira. A criança corre atrás da pomba, gritando para que voe, voe logo, bem alto. Depois ri... O óleo dos pastéis está borbulhante e muitos escolhem-no para forrar o estômago de café da manhã. Outros caminham, caminham, circulam, olham o morango vermelho por cima e verde por baixo, a manga cheirosa, o abacaxi já cortado em fatias suculentamente ácido, as maças tão perfeitas quanto a da Branca de Neve, o cheiro forte do peixe fresco já com as moscas a rondar, os queijos e laticínios naturais sem soda caústica, a banana amarela cheia de pintas no ponto, a melancia vermelha inteira por dentro e verde listrada por fora.

Mal terminou de dizer a última sílaba e eu sorri ao mesmo tempo em que meus olhos se fecharam por segundos, na doce lembrança do que não vivi, ouvi, nem vi na infância, mas rememorei dos registros em preto e branco dos livros e dos arquivos da TV e recordei do esplendoroso sorriso das mãos dançantes de Carmem Miranda. Carmem da audácia e brasilidade de mulher. Hoje, ligo as rádios e não encontro nem as Carmens, nem as Mirandas, nem a Conceição.

Olhei pra ele e agradeci duas vezes. Uma pela gentileza, outra por ter reparado que alguém precisava de ajuda.
Rodoviária é assim, histórias que se cruzam, caminhos que vão e partem, saudades, lembranças, gentes, mentirosos, loucos, mas o melhor: muita bagagem.

Passa-se mais horas em frente ao computador.
Menos horas em frente aos olhos de alguém.
Isso, por um lado, significam algumas virtudes, bastante trabalho.
Mas o balanço e o equilíbrio são essenciais.
Tá tudo longe.
Todos virtualmente vivendo, apenas.
E só.
E assim, bastam-se comentários, conversas, observações, lembretes, sonhos, ideais, vontades.
Ciber-espaço
Cold-play.

A pessoa é para o que nasce.
Transbordei.
Têm dias que você procura um filme e não acha.
Têm dias que os filmes procuram você e não encontram.
Ás vezes estão escondidos nas prateleiras ou a película derreteu.
Ás vezes me jogo dentro de mim e não me acho, mas achei e me acharam. As três senhorinhas desse longa.
“A pessoa é para o que nasce”.
Vale a pena sentir.
Manoel de Barros também me achou.
Estávamos brincado de esconde-esconde.
Há tempo o queria mais perto, aqui comigo.
De sebo em sebo não cheguei perto.
Mas em uma livraria ouvi meu nome, olhei para trás, era ele. Em duas versões. “Memórias inventadas...”

Quando meu avô foi pro céu, há 12 anos, eu achava que ele ia.
Quando minha avó foi pro céu, há uma semana, eu também achava que ela ia.
Quando meu avô chegou, ele recebeu um pacote de pururuca e uma pinguinha.
Quando minha avó chegou, ela recebeu um abraço do meu avô, e um caderninho com probleminhas de matemática.
Aí os dois se abraçaram, e voltaram a viver juntos...
... A vida vem,
a vida vai
Quando vem é tão bonita.
Quando vai é tão triste.
Infeliz o ocidental que inventou velar algo já ido.
Feliz a alma que sabe sorrir a expectativa da não dor.
O material fica, é pueril.
A alma que vai, é sutil.
Roda mundo, roda gigante.
 
... Reinventar
Sabe? Reviver, todos os dias.
É por isso que escolhi ser jornalista. Como diz minha querida Eliane Brum, se eu não sair de uma entrevista transformada, é melhor eu escolher outra profissão.