quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

O retrato de Dorian Gray

Wilde, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Abril; São Paulo / SP; 2010; 298 páginas.

Breve relato do autor:

Oscar Wilde foi um influente escritor, poeta e dramaturgo britânico, de origem irlandesa. Depois de escrever de diferentes formas ao longo da década de 1880, se tornou um dos dramaturgos mais populares de Londres, em 1890.

Dados da obra:

Neste romance, o belo jovem Dorian Gray torna-se modelo para uma pintura do artista Basil Hallward. O pintor o apresenta ao Lord Henry Wotton, que o faz tomar consciência de sua beleza e do valor de sua juventude, iniciando-o em uma vida de vício. Sob essa influência e apaixonado pela própria imagem, Dorian deseja permanecer eternamente belo como no retrato, o que acaba acontecendo.

Passagens:

– Não conseguiria explicar. Quando gosto muito de uma pessoa, não gosto de dizer-lhe o nome a ninguém, pois é o mesmo que entregar parte dela. Passei a gostar da privacidade, com o tempo. Parece a única coisa capaz de transformar a vida moderna em algo misterioso, maravilhoso para nós. A coisa mais comum, se a escondemos, torna-se deliciosa. Hoje em dia, quando saio da cidade, não digo à minha gente aonde vou. Se o dissesse, perderia todo o meu prazer. É um hábito bobo, eu diria, que, de  alguma forma, parece acrescentar, à vida das pessoas, uma boa dose de romance...

– Por demais injusto! Eu estabeleço uma grande diferença entre as pessoas. Meus amigos escolho-os pela beleza; meus conhecidos pelo caráter; e meus inimigos, pelo intelecto. Um homem não pode ser tão meticuloso na escolha de inimigos. Nenhum dos meus é idiota, são todos homens de certo poder intelectual e, por conseguinte, todos me apreciam. Será vaidade de minha parte? Eu creio que sim.

– ... creio que, se o homem vivesse uma vida plena, completa, se desse forma a toda sensação, expressão a todo pensamento, realidade a todo sonho, creio que o mundo conquistaria um impulso tão novo de alegria que nos esqueceríamos d todos os males do medievalismo e retornaríamos ao ideal helênico, a algo mais requintado, mais substancial mesmo, quem sabe.

... Ressecam as flores comuns, mas reflorescem. O laburno, no mês de junho vindouro, será tão amarelo quanto o é hoje, e daqui a um mês, haverá muitos asteroides púrpuros na clematite. Mas jamais voltamos à juventude. A pulsação da alegria, que bate em nós aos vinte, preguiça. Nossos membros falham, nossos sentidos apodrecem. Nos degeneramos em fantoches repugnantes, assediados pela lembrança de paixões a que muito tememos e pelas tentações exóticas a que não tivemos coragem de nos entregar. Juventude! Juventude! Não existe nada no mundo, nada!, senão a juventude!

– Como é triste! Eu vou ficar velho, horrível, pavoroso. E este quadro permanecerá jovem, para sempre. Não envelhecerá um dia além deste dia específico de junho... Ah, se fosse o contrário! Se fosse eu a permanecer jovem para sempre, se fosse esse quadro a envelhecer! Eu daria... eu daria tudo por isso! É isso mesmo, não há nada neste mundo que eu não daria em troca! Daria até mesmo minh´alma!

... – Quando amamos, sempre, no início, enganamos a nós mesmos; e, no fim, terminamos por enganar os outros. É isso a que o mundo chama de romance...

Em boa parte, o garoto fora sua própria criação. Fizera-o prematuro, o que era uma façanha. As pessoas comuns costumavam esperar para que a vida lhes exibisse os próprios segredos; para a minoria, porém, para os eleitos, os mistérios da vida eram revelados antes mesmo que o véu fosse afastado, efeito, muitas vezes, da arte, especialmente da literatura, que lida, direto, com as paixões do intelecto...

– O motivo por que tanto gostamos de pensar bem dos outros é que todos nós temos medo de nós mesmos. A base do otimismo é terror puro. Pensamos que somos generosos, pois creditamos ao próximo a posse das virtudes propensas a nos beneficiar. Enaltecemos o banqueiro para que possamos sacar a descoberto, e descobrimos boas qualidades no salteador de estrelas na esperança de que nos poupe os bolsos...

– A senhora não vai se casar de novo, lady Narborough. A senhora está muito feliz assim. Quando a mulher se casa de novo, é porque detestava o marido anterior. E o homem, quando se casa de novo, é porque adorava a última mulher. As mulheres tentam a sorte; os homens arriscam-na.

... – Todo romance vive da repetição e a repetição converte todo apetite em arte. Além disso, cada vez que amamos é a única vez que amamos. A diferença do objeto não altera a exclusividade da paixão, apenas a intensifica. Podemos ter, na vida, no máximo, uma grande experiência, e o segredo da vida está em repeti-la com a maior frequência possível.

– ... A alma é uma realidade terrível. Podemos comprá-la, vendê-la, barganhá-la. Podemos envenená-la ou aperfeiçoá-la. Em cada um de nós existe uma alma. Eu sei que existe.

... A tragédia da velhice não é a existência do velho, mas sim, a existência do jovem... 

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Os livros que devoraram meu pai

Cruz, Afonso. Os livros que devoraram meu pai. Leya; São Paulo / SP; 2011; 112 páginas.

Breve relato do autor:

Afonso Cruz é um escritor premiado, realizador de filmes de animação, ilustrador e músico português.

Dados da obra:

Vivaldo Bonfim é um escriturário entediado que, escondido de seu chefe, lê romances e clássicos da literatura durante o expediente, na repartição de finanças onde está empregado. Um dia, enquanto finge trabalhar, perde-se nas páginas de um livro e desaparece deste mundo. Esta é sua verdadeira história - contada em primeira pessoa por Elias Bonfim, seu filho, que recebe como herança a biblioteca de Vivaldo e, então, inicia uma aventura pelos grandes clássicos em busca de seu pai, percorrendo obras repletas de assassinos, paixões devastadoras, feras e outros perigos feitos de letras.

Passagens:

Soube pela minha avó que um tal Orígenes, por exemplo, dizia existir uma primeira leitura superficial, e outras mais profundas, alegóricas. Não vou me alongar nesse tema, basta saber que um bom livro deve ter mais do que uma camada, deve ser um prédio de vários andares. O rés do chão não serve à literatura. É adequado para a construção civil, é cômodo para quem não gosta de subir escadas, útil para quem não pode subir escadas, mas, para a literatura, tão necessários andares empilhados uns sobre os outros. Escadas e escadarias, letras abaixo, letras acima.

Sr. Prendick ladrou uns insultos, e Sr. Hyde mostrou sua bengala nervosa. Ficaram os dois ali, tensos, um olhando para o outro, sem saberem muito bem quem era animal e quem era homem. Julgo que a conclusão de um livro chamado A Revolução dos Bichos, de um tal Orwell, se adapta perfeitamente àquela situação: eles se olhavam e havia pouca diferença entre o animal e o homem. Acabei com aquela cena que se preparava para ser bastante violenta.

Não voltei a visitar Sr. Hyde e sua bengala nervosa. Agora o desafio era outro: precisava encontrar Raskolnikov. Procurei-o entre as obras de outros russos e, por mera sorte, acabei por encontrá-lo no segundo livro que tirei da estante, logo a seguir ao A Mãe, de Gorki. O livro chamava-se Crime e Castigo. Tinha uma lombada grossa, e eu o abri com cuidado, por causa daquela obesidade toda que se manifestava em largas centenas de páginas. Era pesado como um feijoada, e a encadernação parecia a de uma Bíblia. O título esparramava-se em letras douradas, muito brilhantes. Por baixo dele, lia-se o nome do autor: Fiódor Dostoiévski.

Para uns, a raiz é a parte invisível que permite à árvore crescer. Para mim, raiz é a parte invisível que a impede de voar como os pássaros. Na verdade, uma árvore é um pássaro defeituoso.

– Os livros encostados uns aos outros, em uma prateleira, são universos paralelos! – gritei para a sala, mas não obtive resposta.

– Exatamente, Sr. Bonfim. Quando vemos uma bela flor num deserto, a admiramos, mas quando passamos a vida rodeados de belas flores, não reparamos nelas. Perdem todo o significado da individualidade, de ser único. É o preço da quantidade e, se quer saber, caro Bonfim, é o mal dos tempos. Tudo é muito, vivemos nesse reino de quantidades, rodeados de coisas para que nos esqueçamos de nós mesmos e do que se passa aqui dentro.

– Nada mais certo. Todavia, de uns anos para cá tem acontecido algo que certamente não era esperado. Os livros começaram ser modificados. As pessoas que os decoram não resistem a alterar uma ou outra situação. Depois ensinam com os maneirismos as suas modificações, e, aos poucos, as histórias vão se alterando radicalmente. O que fazer? O ser humano não prescinde de colocar sua assinatura na casca das árvores, nas pedras, nos banheiros. Muitas vezes, só para dizer que está ali, presente.

– Nossas memórias nunca são verdadeiras ou absolutamente verdadeiras são apenas uma interpretação. Existem outras, e, ao longo dos anos começamos a ver o passado com uma luz diferente. Nossas memórias passam a ser vistas de diferentes perspectivas, conforme aquilo que aprendemos e de acordo com aquilo que sentimos no instante em que relembramos.

... Continuei a ler compulsivamente, e julgo que acabei por encontrar meu pai. Não por ter lido um sótão inteiro (e mais, muito mais), mas por ter me tornado pai eu próprio.