Castello, José. Ribamar. Bertrand Brasil; Rio de Janeiro / RJ; 2010; 280 páginas.
Dados da obra:
Misto de biografia, narrativa de viagem e romance, Ribamar alterna histórias reais com outras inventadas. Trata-se do relato de viagem do autor a Parnaíba (PI), cidade onde seu pai, José Ribamar, viveu. Tem por base a Carta ao Pai, de Franz Kafka, na qual Castello a utiliza para pensar na sua relação com seu próprio pai. O livro ganhou o Prêmio Jabuti 2011 na categoria Melhor Romance.
Breve relato do autor:
José Castello é mestre em Comunicação pela UFRJ, editor do caderno “Ideias” do Jornal do Brasil, cronista e repórter literário de O Estado de S. Paulo.
Passagens:
“Passo a acreditar, então, no diagnóstico que você me deu. Ele se torna uma pedra guardada em meu peito. No colégio, peço ajuda ao professor de biologia, um padre. Nervos são fios sensíveis que se desenrolam no interior do corpo – como um novelo que deus esqueceu dentro de nós. Através deles, escorrem impulsos que se deslocam para cá e para lá. Quando se movem muito rápido, provocam agitação. Quando desaceleram, trazem a angústia. Não há saída.”
“Tenho os olhos vazios. Um sopro ergue minha íris. Sou, como se diz, um Sampaku, alguém incapaz de ter uma reação adequada ao perigo e que, por isso, traz os olhos deslocados pelo pavor.
Também Franz Kafka se esquivou da luta contra Hermann, preferindo a mudez. Embora nervosos, seus olhos continuaram fixos, depositados bem no centro das órbitas. Talvez porque em seus escritos ele não parasse de gritar.
Minha íris não toca a parte inferior dos olhos. Ao contrário, ela se ergue – como se batesse asas, lutando para escapar das pálpebras. Diz-se que os Sampakus habitam um espaço cinzento entre a vida e a morte. Sempre me senti um pouco separado da existência.
Em situações de risco, congelo; nessas horas, meus olhos se erguem na esperança de não ver.”
“Você me falou, um dia, da falsa origem da família. Em Lisboa, um jovem comerciante desposa uma Castelo Branco. Após as núpcias, o casal emigra para o Brasil. Na costa do Ceará, um naufrágio. A mulher morre, ele sobrevive. Para homenageá-la, o marido, um Queiroz, adota o sobrenome da esposa. Dele – como uma nave que se prende a um fio imaginário – descende toda a família no Brasil.
‘Investigue isso melhor’, meu tio sugere. Não farei isso: não quero correr o risco de perder a lenda que você me deu. Prefiro conservá-la, mesmo à custa da verdade. A verdade esfaqueia. A ficção enrijece.
Como um verdadeiro Castelo Branco (pois o verdadeiro Castelo Branco, a julgar pela lenda, é falso), fico com a ficção.”
“Vejo escrito em um muro: ‘Todo neurótico é um container’. Estou com 12 anos, busco um frase que me defina. No lugar mais improvável, eu a encontro.
Há um sentido duplo no verbo conter. De um lado, significa guardar, incluir. De outro, represar, frear o ímpeto, impedir. Aquilo que guardo é o que me refreia. O que incluo (o que sou) é o que me impede de ser.
Volto ao ‘container’. Trata-se de um recipiente, em geral de grandes dimensões, destinado ao acondicionamento e transporte de cargas, me diz um dicionário. Guarda (esconde) aquilo que pesa e que, por isso, não pode estar em outro lugar. Também eu carrego minhas pedras.”
“Anos depois, encontro meu tio, por acaso, em um café. Vou para a faculdade, sou eu quem, dessa vez, levo comigo um livro.
‘É um romance ingênuo que eu, por vergonha, escondo. O que um tio rebelde pensará de mim? Enquanto ele lê para avançar e se fortalecer, eu leio para voltar atrás e para fugir. Livros, de fato, podem tudo.
Insiste tanto que eu o mostro. Abre um sorriso, aceita minha aflição. ‘Não é o autor que escreve um livro, mas o leitor.’
Com uma frase simples, deposita sobre meus ombros um destino. Quando saio do café, já sou outro.”
“Agora que você não pode mais protestar, agora que está retido em seu último silêncio, nada me ameaça. Posso tudo: e é contra isso – contra esse tudo – que devo lutar para conseguir escrever. Um escritor que pode tudo nada tem a dizer.
Filho vingativo (terá o professor Jobi razão?), manipulo o que você me diz, moldo as palavras segundo meus interesses, falsifico. Não é só o pai que faz o filho. O filho, de modo mais traiçoeiro, constrói (destrói) o pai.
Não, pai, não escrevo para me desforrar. Escrevo para chegar mais perto de você. Nossos atos, porém, nos ultrapassam. Quero fazer uma coisa e faço outra. Diabos.”
“O escritor é um viajante que, contando apenas com uma precária bússola, chega a um destino que nunca planejou. Todo escritor é um náufrago. Um Robinson.
Nem por isso seu destino se torna menos verdadeiro; ao contrário, o inesperado o avaliza. A esse porto inexistente chamamos, enfim, de literatura.”
“Já não me interesso pelo Dicionário poético de meu bisavô, Manuel Thomaz. Chave inútil, não abre porta alguma. Em vez de abrir, ela multiplica as trancas.
Só agora me dou conta: esqueci minha Carta ao pai – o mesmo livro que, um dia, lhe dei – em uma gaveta do hotel. Eu o deixei em Parnaíba, pai. Quem será o próximo a ler?”