quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Ribamar

Castello, José. Ribamar. Bertrand Brasil; Rio de Janeiro / RJ; 2010; 280 páginas.

Dados da obra:

Misto de biografia, narrativa de viagem e romance, Ribamar alterna histórias reais com outras inventadas. Trata-se do relato de viagem do autor a Parnaíba (PI), cidade onde seu pai, José Ribamar, viveu. Tem por base a Carta ao Pai, de Franz Kafka, na qual Castello a utiliza para pensar na sua relação com seu próprio pai. O livro ganhou o Prêmio Jabuti 2011 na categoria Melhor Romance.

Breve relato do autor:

José Castello é mestre em Comunicação pela UFRJ, editor do caderno “Ideias” do Jornal do Brasil, cronista e repórter literário de O Estado de S. Paulo.

Passagens:

“Passo a acreditar, então, no diagnóstico que você me deu. Ele se torna uma pedra guardada em meu peito. No colégio, peço ajuda ao professor de biologia, um padre. Nervos são fios sensíveis que se desenrolam no interior do corpo – como um novelo que deus esqueceu dentro de nós. Através deles, escorrem impulsos que se deslocam para cá e para lá. Quando se movem muito rápido, provocam agitação. Quando desaceleram, trazem a angústia. Não há saída.”

“Tenho os olhos vazios. Um sopro ergue minha íris. Sou, como se diz, um Sampaku, alguém incapaz de ter uma reação adequada ao perigo e que, por isso, traz os olhos deslocados pelo pavor.
Também Franz Kafka se esquivou da luta contra Hermann, preferindo a mudez. Embora nervosos, seus olhos continuaram fixos, depositados bem no centro das órbitas. Talvez porque em seus escritos ele não parasse de gritar.
Minha íris não toca a parte inferior dos olhos. Ao contrário, ela se ergue – como se batesse asas, lutando para escapar das pálpebras. Diz-se que os Sampakus habitam um espaço cinzento entre a vida e a morte. Sempre me senti um pouco separado da existência.
Em situações de risco, congelo; nessas horas, meus olhos se erguem na esperança de não ver.”

“Você me falou, um dia, da falsa origem da família. Em Lisboa, um jovem comerciante desposa uma Castelo Branco. Após as núpcias, o casal emigra para o Brasil. Na costa do Ceará, um naufrágio. A mulher morre, ele sobrevive. Para homenageá-la, o marido, um Queiroz, adota o sobrenome da esposa. Dele – como uma nave que se prende a um fio imaginário – descende toda a família no Brasil.
‘Investigue isso melhor’, meu tio sugere. Não farei isso: não quero correr o risco de perder a lenda que você me deu. Prefiro conservá-la, mesmo à custa da verdade. A verdade esfaqueia. A ficção enrijece.
Como um verdadeiro Castelo Branco (pois o verdadeiro Castelo Branco, a julgar pela lenda, é falso), fico com a ficção.”

“Vejo escrito em um muro: ‘Todo neurótico é um container’. Estou com 12 anos, busco um frase que me defina. No lugar mais improvável, eu a encontro.
Há um sentido duplo no verbo conter. De um lado, significa guardar, incluir. De outro, represar, frear o ímpeto, impedir. Aquilo que guardo é o que me refreia. O que incluo (o que sou) é o que me impede de ser.
Volto ao ‘container’. Trata-se de um recipiente, em geral de grandes dimensões, destinado ao acondicionamento e transporte de cargas, me diz um dicionário. Guarda (esconde) aquilo que pesa e que, por isso, não pode estar em outro lugar. Também eu carrego minhas pedras.”

“Anos depois, encontro meu tio, por acaso, em um café. Vou para a faculdade, sou eu quem, dessa vez, levo comigo um livro.
‘É um romance ingênuo que eu, por vergonha, escondo. O que um tio rebelde pensará de mim? Enquanto ele lê para avançar e se fortalecer, eu leio para voltar atrás e para fugir. Livros, de fato, podem tudo.
Insiste tanto que eu o mostro. Abre um sorriso, aceita minha aflição. ‘Não é o autor que escreve um livro, mas o leitor.’
Com uma frase simples, deposita sobre meus ombros um destino. Quando saio do café, já sou outro.”

Agora que você não pode mais protestar, agora que está retido em seu último silêncio, nada me ameaça. Posso tudo: e é contra isso – contra esse tudo – que devo lutar para conseguir escrever. Um escritor que pode tudo nada tem a dizer.
Filho vingativo (terá o professor Jobi razão?), manipulo o que você me diz, moldo as palavras segundo meus interesses, falsifico. Não é só o pai que faz o filho. O filho, de modo mais traiçoeiro, constrói (destrói) o pai.
Não, pai, não escrevo para me desforrar. Escrevo para chegar mais perto de você. Nossos atos, porém, nos ultrapassam. Quero fazer uma coisa e faço outra. Diabos.”

“O escritor é um viajante que, contando apenas com uma precária bússola, chega a um destino que nunca planejou. Todo escritor é um náufrago. Um Robinson.
Nem por isso seu destino se torna menos verdadeiro; ao contrário, o inesperado o avaliza. A esse porto inexistente chamamos, enfim, de literatura.”

“Já não me interesso pelo Dicionário poético de meu bisavô, Manuel Thomaz. Chave inútil, não abre porta alguma. Em vez de abrir, ela multiplica as trancas.
Só agora me dou conta: esqueci minha Carta ao pai – o mesmo livro que, um dia, lhe dei – em uma gaveta do hotel. Eu o deixei em Parnaíba, pai. Quem será o próximo a ler?”

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Belas Maldições

Gaiman, Neil; Pratchett, Terry. Belas maldições: as belas e precisas profecias de Agnes Nutter, bruxa. Bertrand Brasil; Rio de Janeiro / RJ; 2010; 376 páginas.

Dados da obra:

Nesta divertida obra, os autores falam sobre o Apocalipse. Segundo as profecias, o mundo vai acabar em um sábado, antes do jantar. Um anjo e uma serpente tentam evitar, já que gostam de viver na Terra, mas a chegada do Anti-Cristo, na pele de um menino de 11 anos, parece apressar o fim.

Breve relato do autor:

Neil Gaiman é um escritor inglês de romances e quadrinhos, autor da conhecida série em HQ Sandman.
Terry Pratchett é também um escritor inglês, mais conhecido pelos livros da série Discworld.

Passagens:

“Crowley deu um soco no volante. Tudo estava indo tão bem, ele realmente tivera tudo sob controle nestes últimos séculos. É assim que acontece, você acha que está no topo do mundo, e de repente jogam o Armagedon em cima de você. A Grande Guerra, a Última Batalha. Céu versus Inferno, uma Queda, sem rendição. E estamos conversados. Nada mais de mundo. Era isso o que o fim do mundo queria dizer. Nada mais de mundo. Só o Céu eterno ou, dependendo de quem ganhasse, o Inferno eterno. Crowley não sabia qual era pior.
Bom, o Inferno era pior, claro, por definição. Mas Crowley se lembrava de com era o Céu, e ele tinha algumas coisas em comum com o Inferno. Pra começar, não se conseguia uma bebida decente em nenhum dos dois. E o tédio que se sentia no Céu era quase tão ruim quanto a animação que se tinha no Inferno.
Mas havia como escapar disso. Não era possível ser um demônio e ter livre-arbítrio.”

“Crowley sempre soubera que estaria por perto quando o mundo acabasse, porque era imortal e não teria outra alternativa. Mas esperava que ainda demorasse muito.
Porque ele gostava das pessoas. Era um grande defeito num demônio.
Ah, ele dera o melhor de si para infernizar as vidas deles, porque esse era o seu trabalho, mas nada que ele pudesse pensar era metade do que eles pensavam por conta própria. Pareciam ter um talento para isso. Estava embutido no projeto de criação deles de algum modo. Nasceram num mundo que era contra eles em um milhão de coisinhas, e então dedicavam a maior parte de suas energias a torná-lo pior. Ao longo dos anos, Crowley achara cada vez mais difícil encontrar algo de demoníaco a fazer que se destacasse contra o pano de fundo natural da maldade generalizada. No decorrer do último milênio, houve momentos em que sentiu vontade de enviar uma mensagem lá para Baixo dizendo: escutem, que tal a gente desistir de tudo agora, fechar Dis e o Pandemônio e todo o resto e nos mudarmos para cá? Não há nada que possamos fazer a eles que eles já não façam por conta própria, e eles fazem coisas que nós sequer pensamos, frequentemente envolvendo eletrodos. Eles têm o que não temos. Eles têm imaginação. E eletricidade, é claro.
Um deles havia escrito isso, não havia? ‘O inferno é vazio, e todos os demônios estão aqui.’”

“E havia Outro. Eles estava na praça em Kumbolalândia. E estava nos restaurantes. E estava no peixe, e no ar, e nos barris de herbicida. Estava nas estradas, e nas casas, e nos palácios, e em galpões.
Não havia lugar onde fosse estranho, e não havia como escapar dele. Ele estava fazendo o que fazia melhor, e o que estava fazendo era o que ele era.
Ele não estava esperando. Estava trabalhando.”

“– Sabe, o mal sempre contém as sementes de sua própria destruição – disse o anjo. – Em última instância, ele é negativo, e portanto abrange sua queda mesmo em seus momentos de aparente triunfo. Não importa o quão grandioso, o quão bem-planejado, o quão aparentemente à prova de falhas um plano maligno possa ser, a condição pecaminosa inerente irá, por definição, se voltar contra seus instigadores. Não importa o quanto aparentemente bem-sucedido ele possa parecer ao longo do caminho, ao fim ele se quebrará. Afundará sobre as rochas da iniquidade e afundará de cabeça para desaparecer sem um vestígio nos mares do esquecimento.”

“– É difícil descrever. Alguma coisa ou alguém ama este lugar. Ama cada centímetro dele de forma tão poderosa que o escuda e protege. Um amor profundo, imenso, forte. Como alguma coisa ruim pode começar aqui? Como pode o fim do mundo começar num lugar com este? Este é o tipo de cidade onde você gostaria de criar seus filhos. É o paraíso das crianças. – Ela sorriu cansada. – Você devia ver os meninos daqui. Eles não existem! Saíram direto dos livros infantis” Todos com os joelhinhos ralados, todos umas gracinhas e...”

“Às vezes os seres humanos são muito parecidos com abelhas. Abelhas protegem ferozmente sua colmeia, desde que você esteja fora dela, uma vez lá dentro, as operárias passam a supor que você deve ter sido liberado pela administração e nem ligam para você; vários insetos de carga evoluíram para uma existência melíflua devido a este fato. Humanos agem da mesma forma.”

“Não sei o que tem de tão fantástico em criar pessoas como pessoas e então ficar chateado porque elas se comportam feito pessoas – disse Adam severo. – De qualquer forma, se vocês parassem de falar pras pessoas que tudo vai ser definido depois que elas morrerem, elas poderiam tentar definir tudo enquanto estivessem vivas. Se eu mandasse, tentaria fazer as pessoas viverem bem mais, que nem o velho Matusalém. Seria muito mais interessante e eles poderiam começar a pensar no tipo de coisas que estão fazendo com todo o ambiente e a ecologia, porque eles ainda estariam por aqui cem anos depois.”