segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Homem lento


Coetzee J.M. Homem lento. Companhia das Letras; São Paulo / SP; 2007; 276 páginas.
 
Breve relato do autor:

J. M. Coetzee nasceu na Cidade do Cabo, na África do Sul. É um dos principais escritores contemporâneos da língua inglesa, e já recebeu diversos prêmios por sua obra, entre eles o Nobel, em 2003, e – caso único – dois Booker Prize, em 1983, por Vida e época de Michael K., e em 1999, por Desonra.

Dados da obra:

O protagonista, Paul Rayment, fotógrafo aposentado em Adelaide, na Austrália, é atropelado no início da trama. O romance acompanha a excruciante recuperação dele, depois de ter a perna amputada – uma história na qual intervém a escritora Elizabeth Costello, personagem da obra anterior de Coetzee.

Passagens:

... Quem é sua família? Qual a resposta correta? Tem uma irmã. Ela morreu há doze anos, mas ainda vive nele ou com ele, assim como tem uma mãe que, nos momentos em que não está nele ou com ele, espera a trombeta dos anjos em seu jazigo no cemitério de Ballarat. Um pai também, mais distante em sua espera, no cemitério de Pau, que ele raramente vai visitar. Serão sua família, os três? Aqueles de cuja vida se nasce morrem, ele gostaria de informar a quem formulou a pergunta. Você leva esses com você, assim como espera ser levado por aqueles que vêm depois de você. Mas o formulário não tem espaço para respostas extensas.

Guardador-de-livros: é assim que chamam gente como ele na Croácia? O que será que quer dizer guardador-de-livros? Um homem que protege livros do esquecimento? Um homem que se apega a livros que nunca lê? Seu escritório está forrado do chão ao teto de livros que nunca abrirá de novo não porque não valham a pena ler, mas porque ele não terá mais tempo.

Será que realmente se sente natural? Sente-se natural diante da ocorrência da rua Magill? Não faz a menor ideia. Mas talvez seja isso que quer dizer natural: não fazer ideia. Será que a Vênus de Milo se sente natural? Apesar de não ter braços, a Vênus de Milo é tida como o ideal da beleza feminina. Um dia ela teve braços, conta a história, mas seus braços foram quebrados; a perda deles só faz sua beleza mais pungente. No entanto se descobrissem amanhã que a Vênus foi de fato feita a partir de uma modelo amputada, ela seria imediatamente removida para um depósito no porão. Por quê? Por que a imagem fragmentada de uma mulher pode ser admirada, mas não a imagem de uma mulher fragmentada, independentemente de os cotos terem sido bem costurados?

Por isso é que, mais tarde, começou a perder o interesse pela fotografia: primeiro quando a cor dominou, depois quando ficou claro que a velha magia das emulsões sensíveis à luz estava se acabando, que para a nova geração o encanto estava em uma techne de imagens sem substância, imagens que podiam espoucar no éter sem resistir em parte alguma, que podiam ser sugadas para dentro de uma máquina e emergir dela retocadas, falsificadas. Ele desistiu de registrar o mundo em fotografias então e transferiu suas energias para a conservação do passado.

“Isso tudo um dia foi novo”, diz ele, com um gesto de mão igual ao de Drago. “Tudo no mundo um dia foi novo. Até eu era novo. Na hora em que eu nasci, eu era a coisa mais moderna, mais nova na face da Terra. Aí o tempo foi agindo sobre mim. Do mesmo jeito que vai agir sobre você. O tempo vai te engolir. Sua bela casa nova com sua bela esposa nova e seu filho vai virar para vocês dois e dizer Por que vocês são tão antiquados? Quando este dia chegar, espero que você se lembre desta nossa conversa.
Drago come uma última garfada de risoto, uma última garfada de salada “Nós fomos para a Croácia no Natal passado”, diz. “Eu, minha mãe e minhas irmãs. Para Zadar. É lá que moram os parentes da minha mãe. São bem velhos agora. Eles também foram, como o senhor diz, ultrapassados pelo tempo. Minha mãe comprou um computador para eles e nós mostramos como se usa. Então eles agora pode fazer compras pela internet, podem mandar e-mails, nós podemos mandar fotos. Eles gostam. E são bem velhos.”
“E daí?”
“Daí que dá para escolher”, diz Drago. “Só isso”.

Ele encolhe os ombros. “Sempre achei esse conceito muito inglês, lar. Hearth and home, dizem os ingleses Para eles, home é um lugar onde o fogo queima na hearth, aonde se vai para se aquecer. O lugar onde não se é abandonado no frio. Não, não estou aquecido aqui”. Ele acena com a mão em um gesto que imita o dela numa paródia. ”Eu pareço ser frio em todo lar aonde vou. Não foi isso que você disse de mim? Você é um homem frio.
A mulher fica calada.
“Entre os franceses, como sabe, não existe home. Entre os franceses estar em casa é estar entre os nossos, no meio da nossa gente. Não me sinto em casa na França. Isso é transparente. Eu não sou o nós de ninguém.”

“Lar... O que quer dizer isso? Já disse o que acho de lar. Um pombo tem lar uma abelha tem lar. Um inglês tem lar, talvez. Eu tenho um domicílio, uma residência. Esta é a minha residência. Este é o meu apartamento. Minha cidade. Meu país. Lar é místico demais para mim”.

“Lembre-se Paul, é a paixão que faz o mundo girar. Você não é nenhum analfabeto, deve saber disso. Sem paixão o mundo será vazio e sem forma. Pense em Dom Quixote. Dom Quixote não é um livro sobre um homem sentado numa cadeira de balanço reclamando da chatice de La Mancha. É sobre um homem que mete uma bacia na cabeça, monta em cima do seu fiel cavado de arado e parte para realizar grandes feitos. Emma Rouault, Emma Bovary, sai e compra roupas elegantes, mesmo sem fazer a menor ideia de como vai pagar por elas. Só se vive uma vez, diz Alonso, diz Emma, então vamos agitar? Agitar Paul. Veja o que consegue inventar.”

Marijana acena para o telefone. Estão sendo dispensados? Ele nem terminou de tomar o chá.  “Original”, diz ela. “Que é isso, fotografia original? Aponta câmera, click, faz cópia. Assim que câmera funciona. Câmera igual fotocopiadora. Então que é original? Original já é cópia. Não é igual pintura.”
“Isso é bobagem, Marijana. Discussão inútil. Uma fotografia não é a coisa em si. Nem uma pintura. Mas isso não faz nenhuma das duas ser cópia. Cada uma se torna uma coisa nova, uma coisa verdadeira, nova no mundo, um novo original. Perdi uma foto original que tem valor para mim e quero de volta.”

 “Só imagens. Brinca com imagens no computador, que tem de ladrão nisso? Coisa moderna isso. Imagens, quem é dono? Senhor quer falar, eu aponto câmera para senhor” – ela finca um dedo no peito dele –, “eu sou ladrão, roubo sua imagem? Não: imagem é grátis – sua imagem, minha imagem. Não é segredo o que Drago faz. Essas fotografias” – ela acena para as três fotos na parede – “tudo no website. Qualquer um pode ver. Senhor quer ver website?”