terça-feira, 28 de junho de 2011

As melhores coisas do mundo

Bolognesi, Luiz (roteiro). As melhores coisas do mundo. Imprensa Oficial; São Paulo / SP; 2010; 240 páginas.

Dados da obra:

Inspirado na série de livros Mano, escrita por Gilberto Dimenstein e Heloísa Prieto, o roteiro narra a história de Mano, um adolescente de 15 anos. Ele está aprendendo a tocar guitarra, pois deseja chamar a atenção de uma garota. Seus pais estão se separando, o que o afeta tanto quanto ao seu irmão mais velho. Sua melhor amiga e confidente está apaixonada pelo professor de Física. Em meio a estas situações, Mano precisa lidar com os colegas de escola em momentos de diversão e também sérios, típicos da adolescência nos dias atuais.

Breve relato do autor:

Luiz Bolognesi é um roteirista de cinema que escreveu o roteiro dos filmes Bicho de Sete Cabeças (2001), O Mundo em Duas Voltas (2006), Chega de Saudade (2007), entre outros. Foi redator da Folha de S. Paulo e na Rede Globo.

Passagens:

“V.O. MANO:
Meu pai sempre disse pra curtir a infância porque eu nunca mais ia ser feliz. Ele sempre dizia: passa rápido, filho. Rápido? Demorou séculos até eu conseguir minha liberdade. Finalmente chegou.”

“O olhar do Professor passa por Carol. Ela olha para Artur hipnotizada.
CAROL (V.O.)
Homem de 30 é o auge da humanidade. Ele sabe a diferença entre a mulher fachada e a mulher de verdade, mas não estão caídos como os pais de quarenta.”

“CAROL (V.O.)
O Artur era uma gota de inteligência no oceano de imbecilidade dessa escola. O Deco acha que o Artur volta. Será? Esse Deco é um mistério. Ele já ficou com todas as meninas num raio de 50 km ao redor da escola. A língua dele devia ser doada para a ciência, escaneou o DNA de toda uma geração. Será que um cara assim serve pra namorar?”

“DIRETORA DA ESCOLA
Eu estou trazendo novamente o tema porque praticamente todos os alunos do 1º e 2º ano assinaram um documento pedindo a volta do professor Artur. Foi escrito pelo seu filho, Camila (Camila fica atenta) Vou ler: Nós, alunos abaixo-assinados queremos a volta do professor Artur. Porque a aula dele não tinha lista de chamada e era a aula mais cheia da escola. E por que a nossa colega admitiu publicamente e diz isso na frente dos pais, se for preciso, que foi ela que deu um beijo nele. Botar o Artur para fora é uma violência que os pais e a escola estão fazendo com um professor que a gente admira e confia. Assinam 238 alunos. Quem é a favor da recontratação em caráter temporário do professor, levanta a mão, por favor.”

“PEDRO
Eu me sinto uma bomba relógio ambulante. Parece que vou explodir a qualquer momento. Resolvi apertar o botão.
MANO
Velho, que Mané-bomba o caralho. Você é a pessoa mais importante na minha vida. Esse violão aqui eu toco por sua causa. Aquela sua namorada não é o que você pensa. Ninguém é. Fugir é coisa de bunda-mole. Eu sei que meu irmão não é um bunda-mole.”

“V.O. DE CAROL
Mano tocando na escola ficou em segundo lugar na minha lista das melhores coisas do mundo. Não dá para acreditar, mas a bomba de chocolate da padaria, há 26 semanas liderando a lista das dez melhores coisas do mundo continua na primeira posição. Acho que só quando eu gostar de alguém de verdade, a bomba de chocolate vai perder o primeiro lugar.
Mano acaba de ler e olha para Carol. Ela faz uma cara de fazer o quê, agora você sabe. Os dois ficam se olhando.
MANO
Como a gente faz pra saber que tá gostando de alguém de verdade.
Eles se aproximam e os dois conversam olhando nos olhos. Muito perto.
CAROL
Ainda não sei...”

sexta-feira, 24 de junho de 2011

O filho eterno

Tezza, Cristovão. O filho eterno. Editora Record; Rio de Janeiro / RJ; 2007; 224 páginas.

Dados da obra:

No livro, um misto de romance, biografia, ensaio pessoal e memórias, Tezza expõe, com coragem, as dificuldades e o aprendizado em se criar um filho com síndrome de Down. Ele narra desde o momento do nascimento do filho Felipe, o choque e o despontamento com a descoberta da síndrome, o desconforto, a dificuldade em aceitar, passando pelo aprendizado e as pequenas vitórias, até constatar a importância do menino em sua vida. Em meio a isso, ele rememora sua trajetória, tentando reordenar sua vida.

Breve relato do autor:

Cristovão Tezza é romancista e professor universitário. Nascido em Lages, Santa Catarina, ele mudou-se para Curitiba (PR) aos oito anos, sendo esta cidade palco de boa parte de sua literatura. O livro O Filho Eterno ganhou inúmeros prêmios, sendo, inclusive, eleito como o livro da década pela Revista Bravo!

Passagens:

“Um filho é a ideia de um filho: uma mulher é a ideia de uma mulher. Às vezes as coisas coincidem com a ideia que fazemos delas; às vezes não. Quase sempre não, mas aí o tempo já passou, e então nos ocupamos de coisas novas, que se encaixam em outra família de ideias. Ele não quis nem mesmo saber se será um filho ou uma filha: a mancha pesada da ecografia, aquele fantasma primitivo que se projetava numa telinha escura, movendo-se na escuridão e no calor, não se traduziu em sexo, apenas em ser. Preferimos não saber, foi o que disseram ao médico. Tudo está bem, parece, é o que importa.”

“... A criança estaria no berçário, uma espécie de gaiola asséptica, que o fez lembrar do Admirável Mundo Novo: todos aqueles bebês um ao lado do outro, atrás de uma proteção de vidro, etiquetados e cadastrados para a entrada no mundo, todos idênticos, enfaixados na mesma roupa verde, todos mais ou menos feios, todos amassados, sustos respirantes, todos imóveis, de uma fragilidade absurda, todos tabula rasa, cada um deles apenas um breve potencial, agora para sempre condenados ao Brasil, e à língua portuguesa, que lhes emprestaria as palavras com as quais, algum dia, eles tentariam dizer quem eram, afinal, e para que estavam aqui, se é que uma pergunta pode fazer sentido.”

“... ‘Ele poderá ter filhos?’ – o que pareceu engraçado, como outro cartum. Assim, em um átimo de segundo, em meio à maior vertigem de sua existência, a rigor a única que ele não teve tempo (e durante a vida inteira não terá) de domesticar numa representação literária, apreendeu a intensidade da expressão ‘para sempre’ – a ideia de que algumas coisas são de fato irremediáveis, e o sentimento absoluto, mas óbvio, de que o tempo não tem retorno, algo que ele sempre se recusava a aceitar...”

“... O que ele quer resolver agora não é o problema da criança, mas o espaço que ela ocupa na sua vida. E esses contatos medonhos do dia a dia: explicar. Já viu na enciclopédia que o nome da síndrome se deve a John Langdon Haydon Down (1828 – 1896), médico inglês. À maneira da melhor ciência do império britânico, descreveu pela primeira vez a síndrome frisando a semelhança da vítima com a expressão facial dos mongóis, lá nos confins da Ásia; daí ‘mongoloides’. Que tipo de mentalidade define uma síndrome pela semelhança com os traços de uma etnia? O homem britânico como medida de todas as coisas. O príncipe Charles, aquela figura apolínea, será o padrão da normalidade racial, e ele começa a rir no escuro, acendendo outro cigarro. E como essa denominação durou mais de um século, como algo normal e aceitável?”
“Mas ele formula uma reação; ou pelo menos verbaliza aquilo que, de fato, tentou guiar sua vida até ali: eu não estou condenado a nada – eu me recuso a me condenar a alguma coisa, qualquer que seja. Sempre consegui tomar outra direção, quando preciso. Era um outro tipo de bravata, ele sabia – mas é preciso começar de alguma parte. Por onde? Por aqui mesmo, aqui, agora, hoje, eu e meu filho deficiente mental para todos os tempos.”
“Num raro sábado livre, passeando por Frankfurt, entra numa livraria – milhares, milhões de livros, todos escritos em alemão. Avançando pelos corredores, reconhece e alimenta-se de alguns nomes conhecidos: John Steinbeck, Heinrich Bӧll, Scott Fitzgerald, Sartre, Dickens, Cortázar, Thomas Mann, uma família caótica. Diante daquele mundo que aqui ele não pode ler, estetiza a cena lembrando da frase de Borges, uma figura esguia nas sombras, já quase um decalque de Andy Warhol, criador e vítima da própria obra, as mãos em primeiro plano pousadas sobre a benal: ‘Suprema ironia. Deus me deu todos os livros do mundo e a escuridão’.”
“Vai pondo na gaveta as cartas de recusa das editoras e engolindo em seco as derrotas dos concursos literários, mas nada disso o incomoda de fato. É como se uma ponte dele negasse o confronto desigual – melhor baixar a cabeça discreto, e tentar uma outra esquina do labirinto. O mundo é muito mais forte, impressionante e poderoso do que ele. À medida da província entranha-se na sua alma. Talvez fosse o momento de reler Nietzsche, começar de novo, mas ele não tem mais tempo. Ouve pela primeira vez rodar a engrenagem poderosa do tempo, e um discurso pó de ferrugem já transparece nos objetos que toca. Finalmente, o tempo começa a passar.”
“’Saia daí!’, a voz, violenta, dura, é a última represa do gesto, que virá, contra aquele que olha para ele sem reconhecê-lo, e que é incapaz de verbalizar; ele é incapaz. Mas aferra-se à direção, olhos vazios nos olhos cheios do pai, que enfim explode – como se a mão de seu próprio pai estivesse ali de novo reatando o fio da violência que precisaria se cumprir por alguma ordem divina, a ordem do pai. Ele bate no filho, uma, duas, três, quatro vezes, e até que enfim o filho larga a direção, e, indócil no colo do pai que se afasta dali com a rapidez de quem quer escapar da cena do crime, olha para aquele rosto, que continua sem sentido. O filho não chora. Depois que seu filho deixou de ser bebê, o pai jamais o viu chorar novamente. Sua face no máximo demonstra um espanto irritado diante de algo incompreensível, um sentimento difuso que rapidamente se dilui em troca de algum outro interesse imediato diante dele; como se cada instante da vida suprimisse o instante anterior.”
“Parece que o pai havia entrado em um outro limbo do tempo, em que o tempo, passando, está sempre no mesmo lugar. Uma estabilidade tranquila, uma das pequenas utopias que todos com um pouco de sorte vivem em algum momento de suas vidas. O poder maravilhoso da rotina, ele pensa, irônico. Transforma tudo na mesma coisa, e é exatamente isso que queremos. Mas há uma razão: o seu filho não envelhece. E além da cabeça, que é sempre a mesma, pelos meandros insondáveis da genética ele crescerá pouco, vítima de uma nanismo discreto. Peter Pan, viverá cada dia exatamente como o anterior – e como o próximo. Incapaz de entrar no mundo da abstração do tempo, a ideia de passado e de futuro jamais se ramifica em sua cabeça alegre; ele vive toda manhã, sem saber, o sonho do eterno retorno.”
“Passa alguns anos – ele se culpa, ainda no Templo das Sete Confissões – mais preocupado consigo mesmo do que com os filhos, todo aquele tempo de escrita e reescrita de livros que não existem, que não se publicam, que, publicados, não são lidos, e que enfim não vendem nada, numa inexistência poderosa e asfixiante. Os livros são diferentes uns dos outros, mas ele parece não aprender nada com a experiência, movendo-se em círculos, ele mesmo uma expressão ampliada do seu filho, envolto sempre no próprio labirinto. É um projeto artístico, ou um projeto terapêutico? – ele se pergunta às vezes, caneta à mão, diante da página em branco.”
“Cores à parte, passou a gostar de tudo que era pessimista, carregado e trágico: Munch e principalmente Ensor, aquelas caveiras se fundindo em pesadelos reais e cotidianos. De onde tirava aquilo, ele que passou a vida rindo? Todos os anos sonha em voltar à pintura para brincar de cópias, mas jamais fará isso de novo até o fim de sua vida. Nunca vale voltar ao passado, dizia-lhe o amigo ator da infância. Quando a volta acontece, a carência é tão grande que somos sufocados por tudo que nos falta para imobilizar o tempo e a vida. Acabou-se o que era doce: Fim – ele lê na tela imaginária. Não insista.”

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Talvez uma história de amor

Page, Martin. Talvez uma história de amor. Rocco; Rio de Janeiro / RJ; 2009; 160 páginas.

Dados da obra:
A história gira em torno de Virgile, um anti-herói distraído, contraditório e solitário, que um dia chega em casa do trabalho e ouve em sua secretária eletrônica um recado de alguém, uma mulher, Clara, terminando o relacionamento com ele. O problema é que Virgile não tem a menor ideia de quem seja ela. A princípio deprimido e esquivo, Virgile decide dar uma reviravolta em sua vida e tenta encontrar Clara para saber o que aconteceu.
Breve relato do autor:

Martin Page é um escritor francês, autor do romance best-seller Como me tornei estúpido, que ganhou o euroregional, prêmio literário concedido a estudantes belga, holandês e alemão.

Passagens:

“Sim, Paris era cara, estressante, cada vez menos popular, o trânsito era difícil, e o ar, poluído. Mas continuava a ser a cidade com a maior quantidade de salas de cinema e de farmácias do mundo. Além disso, Virgile gostava das constantes manifestações de estudantes, de desempregados, de assalariados, de aposentados, das pessoas sem documentos. Em sua opinião, não havia melhor maneira de conhecer a cidade do que misturar-se a essa multidão alegre e combativa. As passeatas coloridas e desordenadas deixavam-no orgulhoso de sua cidade. Desfrutava delas com belas irrupções florais em pleno asfalto que bloqueavam a passagem dos carros, interrompiam a vida normal de quarteirões inteiros e faziam os policiais sair de seus furgões. Cidade de resmungões e de manifestantes, ninho de grandes sublevações. Paris nunca era mais real e mais bela do que quando resistia.”

“... Virgile não admitiria isso para ninguém, mas gostava de ir ao McDonald´s. Não era um local agradável ou bonito, mas sentia-se me casa ali. Se Hemingway desembarcasse em Paris nos dias de hoje, já não teria recursos para frequentar os cafés como fazia na década de 1920. O único canto onde poderia se instalar para beber um café e escrever seria o McDonald´s. Em nenhum outro lugar uma pessoa pode se refugiar no calor durante horas por uma quantia módica. Os pobres, os estudantes e o pessoal da periferia sabiam muito bem disso: podem-se checar e-mails, estudar para uma prova ou para as aulas, escrever; os moradores de rua leem os jornais de distribuição gratuita e fingem beber alguma coisa de um copo que pegaram de uma bandeja...”

“...Virgile estava diante de uma mulher nitidamente inimaginável. A imaginação não brota ex nihilo; ela precisa de uma matéria para transformar. E Virgile não tinha nenhum sinal à sua disposição, a mínima partícula ou pigmento de que pudesse se servir para compor uma pintura de Clara. Certamente, poderia fazer dela um retrato perfeito; ela seria tudo aquilo que ele desejava encontrar em uma mulher. Mais ele estava bem precavido quanto aos riscos desse tipo de concepção. Espontaneamente, quando imaginamos o nosso parceiro ideal, desenhamos a nós mesmos, sem as lacunas ou as fragilidades e com o sexo que mais nos convenha.”

“Aceitar a proposta de Svengali evitaria que Virgile entrasse em um conflito, seu mundo preservaria a sua honestidade, e sua vida a sua ataraxia. O ser humano obedece para não morrer. É o teorema da criança bem comportada: se você se comportar bem, terá boas notas, uma profissão, uma casa, uma mulher, e nem você nem nenhuma das pessoas que você ama morrerão. Acabamos descobrindo, no fim, que se trata de uma bobagem, mas não funciona por muito tempo.”

“... a lasanha era resultado de uma conspiração internacional. As massas  foram inventadas na China; os tomates vêm da América; as cebolas, da África ocidental; o alho, do Egito (os operários que construíram Gizé consumiam enormes quantidades disso). Virgile agradeceu interiormente a Quentin ter assumido a condução da conversa e tê-la dirigido naquela forma agradável. Sentia-se abrigado e agasalhado.”