Tezza, Cristovão. O filho eterno. Editora Record; Rio de Janeiro / RJ; 2007; 224 páginas.
Dados da obra:
No livro, um misto de romance, biografia, ensaio pessoal e memórias, Tezza expõe, com coragem, as dificuldades e o aprendizado em se criar um filho com síndrome de Down. Ele narra desde o momento do nascimento do filho Felipe, o choque e o despontamento com a descoberta da síndrome, o desconforto, a dificuldade em aceitar, passando pelo aprendizado e as pequenas vitórias, até constatar a importância do menino em sua vida. Em meio a isso, ele rememora sua trajetória, tentando reordenar sua vida.
Breve relato do autor:
Cristovão Tezza é romancista e professor universitário. Nascido em Lages, Santa Catarina, ele mudou-se para Curitiba (PR) aos oito anos, sendo esta cidade palco de boa parte de sua literatura. O livro O Filho Eterno ganhou inúmeros prêmios, sendo, inclusive, eleito como o livro da década pela Revista Bravo!
Passagens:
“Um filho é a ideia de um filho: uma mulher é a ideia de uma mulher. Às vezes as coisas coincidem com a ideia que fazemos delas; às vezes não. Quase sempre não, mas aí o tempo já passou, e então nos ocupamos de coisas novas, que se encaixam em outra família de ideias. Ele não quis nem mesmo saber se será um filho ou uma filha: a mancha pesada da ecografia, aquele fantasma primitivo que se projetava numa telinha escura, movendo-se na escuridão e no calor, não se traduziu em sexo, apenas em ser. Preferimos não saber, foi o que disseram ao médico. Tudo está bem, parece, é o que importa.”
“... A criança estaria no berçário, uma espécie de gaiola asséptica, que o fez lembrar do Admirável Mundo Novo: todos aqueles bebês um ao lado do outro, atrás de uma proteção de vidro, etiquetados e cadastrados para a entrada no mundo, todos idênticos, enfaixados na mesma roupa verde, todos mais ou menos feios, todos amassados, sustos respirantes, todos imóveis, de uma fragilidade absurda, todos tabula rasa, cada um deles apenas um breve potencial, agora para sempre condenados ao Brasil, e à língua portuguesa, que lhes emprestaria as palavras com as quais, algum dia, eles tentariam dizer quem eram, afinal, e para que estavam aqui, se é que uma pergunta pode fazer sentido.”
“... ‘Ele poderá ter filhos?’ – o que pareceu engraçado, como outro cartum. Assim, em um átimo de segundo, em meio à maior vertigem de sua existência, a rigor a única que ele não teve tempo (e durante a vida inteira não terá) de domesticar numa representação literária, apreendeu a intensidade da expressão ‘para sempre’ – a ideia de que algumas coisas são de fato irremediáveis, e o sentimento absoluto, mas óbvio, de que o tempo não tem retorno, algo que ele sempre se recusava a aceitar...”
“... O que ele quer resolver agora não é o problema da criança, mas o espaço que ela ocupa na sua vida. E esses contatos medonhos do dia a dia: explicar. Já viu na enciclopédia que o nome da síndrome se deve a John Langdon Haydon Down (1828 – 1896), médico inglês. À maneira da melhor ciência do império britânico, descreveu pela primeira vez a síndrome frisando a semelhança da vítima com a expressão facial dos mongóis, lá nos confins da Ásia; daí ‘mongoloides’. Que tipo de mentalidade define uma síndrome pela semelhança com os traços de uma etnia? O homem britânico como medida de todas as coisas. O príncipe Charles, aquela figura apolínea, será o padrão da normalidade racial, e ele começa a rir no escuro, acendendo outro cigarro. E como essa denominação durou mais de um século, como algo normal e aceitável?”
“Mas ele formula uma reação; ou pelo menos verbaliza aquilo que, de fato, tentou guiar sua vida até ali: eu não estou condenado a nada – eu me recuso a me condenar a alguma coisa, qualquer que seja. Sempre consegui tomar outra direção, quando preciso. Era um outro tipo de bravata, ele sabia – mas é preciso começar de alguma parte. Por onde? Por aqui mesmo, aqui, agora, hoje, eu e meu filho deficiente mental para todos os tempos.”
“Num raro sábado livre, passeando por Frankfurt, entra numa livraria – milhares, milhões de livros, todos escritos em alemão. Avançando pelos corredores, reconhece e alimenta-se de alguns nomes conhecidos: John Steinbeck, Heinrich Bӧll, Scott Fitzgerald, Sartre, Dickens, Cortázar, Thomas Mann, uma família caótica. Diante daquele mundo que aqui ele não pode ler, estetiza a cena lembrando da frase de Borges, uma figura esguia nas sombras, já quase um decalque de Andy Warhol, criador e vítima da própria obra, as mãos em primeiro plano pousadas sobre a benal: ‘Suprema ironia. Deus me deu todos os livros do mundo e a escuridão’.”
“Vai pondo na gaveta as cartas de recusa das editoras e engolindo em seco as derrotas dos concursos literários, mas nada disso o incomoda de fato. É como se uma ponte dele negasse o confronto desigual – melhor baixar a cabeça discreto, e tentar uma outra esquina do labirinto. O mundo é muito mais forte, impressionante e poderoso do que ele. À medida da província entranha-se na sua alma. Talvez fosse o momento de reler Nietzsche, começar de novo, mas ele não tem mais tempo. Ouve pela primeira vez rodar a engrenagem poderosa do tempo, e um discurso pó de ferrugem já transparece nos objetos que toca. Finalmente, o tempo começa a passar.”
“’Saia daí!’, a voz, violenta, dura, é a última represa do gesto, que virá, contra aquele que olha para ele sem reconhecê-lo, e que é incapaz de verbalizar; ele é incapaz. Mas aferra-se à direção, olhos vazios nos olhos cheios do pai, que enfim explode – como se a mão de seu próprio pai estivesse ali de novo reatando o fio da violência que precisaria se cumprir por alguma ordem divina, a ordem do pai. Ele bate no filho, uma, duas, três, quatro vezes, e até que enfim o filho larga a direção, e, indócil no colo do pai que se afasta dali com a rapidez de quem quer escapar da cena do crime, olha para aquele rosto, que continua sem sentido. O filho não chora. Depois que seu filho deixou de ser bebê, o pai jamais o viu chorar novamente. Sua face no máximo demonstra um espanto irritado diante de algo incompreensível, um sentimento difuso que rapidamente se dilui em troca de algum outro interesse imediato diante dele; como se cada instante da vida suprimisse o instante anterior.”
“Parece que o pai havia entrado em um outro limbo do tempo, em que o tempo, passando, está sempre no mesmo lugar. Uma estabilidade tranquila, uma das pequenas utopias que todos com um pouco de sorte vivem em algum momento de suas vidas. O poder maravilhoso da rotina, ele pensa, irônico. Transforma tudo na mesma coisa, e é exatamente isso que queremos. Mas há uma razão: o seu filho não envelhece. E além da cabeça, que é sempre a mesma, pelos meandros insondáveis da genética ele crescerá pouco, vítima de uma nanismo discreto. Peter Pan, viverá cada dia exatamente como o anterior – e como o próximo. Incapaz de entrar no mundo da abstração do tempo, a ideia de passado e de futuro jamais se ramifica em sua cabeça alegre; ele vive toda manhã, sem saber, o sonho do eterno retorno.”
“Passa alguns anos – ele se culpa, ainda no Templo das Sete Confissões – mais preocupado consigo mesmo do que com os filhos, todo aquele tempo de escrita e reescrita de livros que não existem, que não se publicam, que, publicados, não são lidos, e que enfim não vendem nada, numa inexistência poderosa e asfixiante. Os livros são diferentes uns dos outros, mas ele parece não aprender nada com a experiência, movendo-se em círculos, ele mesmo uma expressão ampliada do seu filho, envolto sempre no próprio labirinto. É um projeto artístico, ou um projeto terapêutico? – ele se pergunta às vezes, caneta à mão, diante da página em branco.”
“Cores à parte, passou a gostar de tudo que era pessimista, carregado e trágico: Munch e principalmente Ensor, aquelas caveiras se fundindo em pesadelos reais e cotidianos. De onde tirava aquilo, ele que passou a vida rindo? Todos os anos sonha em voltar à pintura para brincar de cópias, mas jamais fará isso de novo até o fim de sua vida. Nunca vale voltar ao passado, dizia-lhe o amigo ator da infância. Quando a volta acontece, a carência é tão grande que somos sufocados por tudo que nos falta para imobilizar o tempo e a vida. Acabou-se o que era doce: Fim – ele lê na tela imaginária. Não insista.”