Barbery, Muriel. A Elegância do Ouriço. Companhia das Letras; São Paulo / SP; 2008; 352 páginas.
Dados da obra:
A história gira em torno de duas personagens principais, que vivem em um prédio elegante no número 7 da Rue de Grenelle, na França: Renée, a zeladora baixinha, gorda, feia, ensimesmada, mas que esconde uma alma inteligente e culta, e Paloma, a caçula da família Josse, uma menina de 12 anos, quieta, sensível e sagaz, mas que por não ver sentido na vida decide colocar um fim nela ao completar 13 anos. No prédio vivem outros personagens, mas a rotina começa a ser alterada com a chegada de um novo morador, um japonês de nome Kakuro Ozu.
Breve relato do autor:
Muriel Barbery estreou na literatura em 2000, com o romance Une gourmandise. A elegância do ouriço, seu segundo livro publicado em 2006, causou sensação literária na França. Professora de filosofia na Normandia, mas fascinada pela cultura japonesa, em 2008 ela foi viver com seu marido no Japão.
Passagens:
Para entender Marx e entender por que ele está errado, tem que ler Ideologia alemã. É o pedestal antropológico sobre o qual se construirão todas as exortações a um mundo novo e no qual será aparafusada uma certeza fundamental: os homens, que se perdem por desejar, melhor fariam se se limitassem às suas necessidades. Num mundo em que o húbris do desejo for amordaçado, poderá nascer uma organização social nova, isenta de lutas, opressões e hierarquias deletérias.”
“Os adultos têm um relação histérica com a morte, que toma proporções enormes, eles fazem um escarcéu, quando na verdade é o acontecimento mais banal do mundo. O que me importa mesmo não é a coisa, é o modo de fazer.”
“Acredita-se erradamente que o despertar da consciência coincide com a hora do nosso primeiro nascimento, talvez porque não conseguimos imaginar outro estado vivo além desse. Parece-nos que sempre vimos e sentimos, e, apoiados nessa crença, identificamos na vinda ao mundo o instante decisivo em que nasce a consciência. Que durante cinco anos uma garota chamada Renée, mecanismo perceptivo operacional dotado de visão, audição, olfato, paladar e tato, tenha vivido na perfeita inconsciência de si mesma e do universo é um desmentido a essa teoria apressada. Pois, para que a consciência surja, é preciso um nome.”
“Já que minha fome não podia ser aplacada no jogo de interações sociais que eram inconcebíveis por minha própria condição – e compreendi isso mais tarde, essa compaixão nos olhos de minha salvadora, pois algum dia já se viu uma menina pobre penetrar na embriaguez da linguagem e nela se exercitar junto com os outros? –, ela o seria nos livros. Pela primeira vez toquei num livro. Eu tinha visto os maiores da turma olharem para traços invisíveis, como que movidos pela mesma força, e, mergulhando no silêncio, tirarem do papel morto alguma coisa que parecia viva.”
“No calor da sala, à beira das lágrimas, feliz como eu nunca tinha sido, segurei sua mão, tépida pela primeira vez depois de meses. Sabia que um inesperado afluxo de energia o levantara da cama, lhe dera a força de se vestir, a sede de sair, o desejo de dividirmos mais uma vez esse prazer conjugal, e também sabia que era o sinal de que restava pouco tempo, o estado de graça que precede o fim, mas isso não me importava, e eu queria apenas aproveitar aqueles instantes roubados do jugo da doença, sua mão quentinha dentro da minha e as vibrações de prazer que nos percorriam, a nós dois, dando graças aos céus, pois era um filme que podíamos saborear juntos.”
"O ritual do chá, essa recondução exata dos mesmos gestos e da mesma degustação, esse acesso a sensações simples, autênticas e requintadas, essa licença dada a cada um, a baixo custo, de se tornar um aristocrata do gosto, porque o chá é a bebida tanto dos ricos como dos pobres, o ritual do chá, portanto, tem essa virtude extraordinária de introduzir no absurdo de nossas vidas uma brecha de harmonia serena. Sim, o universo conspira para a vacuidade, as almas perdidas choram a beleza, a insignificância nos cerca. Então, bebamos uma xícara de chá. Faz-se o silêncio, ouve-se o vento que sopra lá fora, as folhas de outono sussurram e voam, o gato dorme sob uma luz quente. E, em cada gole, se sublima o tempo.”
“Quando penso no Go... Um jogo que tem por objetivo construir um território é obviamente bonito. Pode haver fases de combate, mas são apenas os meios a serviço dos fins: fazer viver seus territórios. Um dos mais bonitos lances do jogo de Go é que está provado que, para ganhar, é preciso viver mas também deixar o outro viver. Quem é ávido demais perde a partida: é um sutil jogo de equilíbrio em que é preciso ganhar vantagem sem esmagar o outro. Afinal, a vida e a morte são apenas a consequência de uma construção bem ou mal edificada. É o que diz um dos personagens de Taniguchi: você vive, você morre, são consequências. É um provérbio de Go e um provérbio da vida.”
"Faz um tempinho que também tenho suspeitas sobre ela. De longe, é de fato uma concierge. De perto... bem de perto... tem algo esquisito... A sra. Michel... Como posso dizer? Transpira inteligência. E olhem que ela se esforça, e como! Vê-se que faz o possível para bancar a concierge e parecer débil mental. Mas já a observei quando falava com Jean Arthens, quando fala com Neptune, nas costas de Diane, quando olha para as senhoras do prédio que passam na frente dela sem cumprimentá-la. A sra. Michel tem a elegância do ouriço: por fora, é crivada de espinhos, uma verdadeira fortaleza, mas tenho a intuição de que dentro é tão simplesmente requintada quanto os ouriços, que são uns bichinhos falsamente indolentes, ferozmente solitários e terrivelmente elegantes.”
“É um fora-do-tempo dentro do tempo... Quando senti pela primeira vez esse abandono delicioso que só é possível a dois? A quietude que sentimos quando estamos sozinhos, essa certeza sobre nós mesmos na serenidade da solidão, não são nada em comparação com o deixar-se levar, deixar-se ir e deixar falar que se vive com o outro, em companhia cúmplice... Quando senti pela primeira vez esse relaxamento feliz em presença de um homem?
Hoje, é esta a primeira vez.”
“Ai, ai, ai, pensei, será que isso quer dizer que é assim que temos de viver a vida? Sempre em equilíbrio entre a beleza e a morte, o movimento e seu desaparecimento?
Estar vivo talvez seja isto: espreitar os instantes que morrem.”
“Elas não me reconheceram”, digo.
Paro no meio da calçada, completamente zonza.
"Elas não me reconheceram”, repito.
Ele também para, e minha mão continua sobre seu braço.
“É porque nunca a viram”, ele me diz. “Mas eu a reconheceria em qualquer circunstância.”
“Basta ter experimentado uma vez que é possível ser cego em plena luz e ver no escuro, para levantar a questão da visão. Por que vemos? Ao entrar no táxi que Kakuro tinha chamado, e pensando em Jacinthe Rosen e Anne-Hélene Meurisse, que só viram de mim o que puderam (no braço do Sr. Ozu, num mundo de hierarquias), a evidência de que o olhar é como a mão que tentaria capturar a água móvel me impressiona com um força inaudita. Sim, o olhar percebe mas não escruta, acredita mas não questiona, recebe mas não procura – vazio de desejo, sem fome nem cruzada.”
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