quarta-feira, 21 de março de 2012

Dois Irmãos

Hatoum, Milton. Dois Irmãos. Companhia das Letras; São Paulo / SP; 2000; 266 páginas.

Breve relato do autor:

De origem libanesa, Milton Hatoum é um escritor, tradutor e professor, considerado um dos grandes escritores vivos do Brasil.

Dados da obra:

A trama gira em torno da tumultuada relação entre dois irmãos gêmeos, Yaqub e Omar, em uma família de origem libanesa que vive em Manaus. A narrativa apresenta avanços e recuos no tempo, sem uma cronologia linear. Os problemas vão sendo revelados aos poucos.

Passagens:

Os gazais de Abbas na boca de Halim! Parecia um sufi em êxtase quando me recitava cada par de versos rimados. Contemplava a folhagem verde e umedecida, e falava com força, a voz vindo de dentro, pronunciando cada sílaba daquela poesia, celebrando um instante do passado. Eu não compreendia os versos quando ele falava em árabe, mas ainda assim me emocionava: os sons eram fortes e as palavras vibravam com a entonação da voz. Eu gostava de ouvir as histórias. Hoje, a voz me chega aos ouvidos como sons da memória ardente. Às vezes ele se distraía e falava em árabe. Eu sorria, fazendo-lhe um gesto de incompreensão: “É bonito, mas não sei o que o senhor está dizendo”. Ele dava um tapinha na testa, murmurava: “É a velhice, a gente não escolhe a língua na velhice. Mas tu podes aprender umas palavrinhas.”

“... Parecia uma menina de boas maneiras e bom humor: nem melancólica, nem apresentada. Durante um tempinho ela nos deu um trabalho danado, mas Zana gostou dela. As duas rezavam juntas as orações que uma aprendeu em Biblos e a outra no orfanato das freiras, aqui em Manaus.” Halim sorriu ao comentar a aproximação da esposa com a índia. “O que a religião é capaz de fazer”, ele disse. “Pode aproximar os opostos, o céu e a terra, a empregada e a patroa.”

Nunca comemos tão bem. Peixes os mais variados, de sabor incomum, cobriam a mesa: costela de tambaqui na brasa, tucunaré frito, pescada amarela recheada de farofa. O pacu, o matrinxã, o curimatã, as postas volumosas e tenras do surubim. Até caldeirada de piranhas, a caju avermelhada e a preta, com molho de pimenta, fumegava sobre a mesa. E também pirão, e sopa com sobras de peixe, farinha feita das espinhas e cabeças, bolinhos e pirarucu com salsa e cebola.

“Nada nesse mundo pode acalmar um homem traído”, disse Zana.
“O Yaqub pode se arrepender”, disse Rânia. “Não vai perseguir ninguém.”
A mãe olhou-a com tristeza e disse com uma voz rouca, mas firme:
“Tu nunca conviveste com um homem, muito menos com um filho.”
Rânia silenciou.

Naquela época, tentei em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. “Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras”, disse Halim durante uma conversa, quando usou muito o lenço para enxugar o suor do calor e da raiva ao ver a esposa enredada ao filho caçula.

sexta-feira, 9 de março de 2012

A bolsa amarela

Bojunga, Lygia. A bolsa amarela. Casa Lygia Bojunga; Rio de Janeiro / RJ; 2004; 135 páginas.

Breve relato do autor:

Lygia Bojunga é uma escritora gaúcha, autora de livros infantis. Trabalhou na TV e no rádio até seu primeiro livro ser publicado, em 1972. Um elemento importante de seus livros é o uso do ponto de vista da criança.

Dados da obra:

 A Bolsa Amarela é o romance de uma menina, Raquel, que entra em conflito consigo mesma e com a família ao reprimir três grandes vontades (que ela esconde em uma bolsa amarela): a vontade de ser gente grande, a de ter nascido menino e a de se tornar escritora. À medida que a narrativa avança, Raquel vai amadurecendo e definindo suas escolhas.

Passagens:

 Meu irmão fez cara de gozação:
– E por que é que você inventou um amigo em vez de uma amiga?
– Porque eu acho muito melhor ser homem do que mulher.
Ele me olhou bem sério. De repente riu:
– No duro?
– É, sim. Vocês podem um monte de coisas que a gente não pode. Olha: lá na escola, quando a gente tem que escolher um chefe pras brincadeiras, ele sempre é um garoto. Que nem chefe de família: é sempre o homem também. Se eu quero jogar uma pelada, que é o tipo do jogo que eu gosto, todo mundo faz pouco de mim e diz que é coisa pra homem; se eu quero soltar pipa, dizem logo a mesma coisa. É só a gente bobear que fica burra: todo mundo tá sempre dizendo que vocês é que têm que meter as caras no estudo, que vocês é que vão ser chefe de família, que vocês é que vão ter responsabilidade, que – puxa vida! – vocês é que vão ter tudo. Até pra resolver casamento – então eu não vejo? – a gente fica esperando vocês decidirem. A gente tá sempre esperando vocês resolverem as coisas pra gente. Você quer saber de uma coisa? Eu acho fogo ter nascido menina.

A bolsa por fora:
Era amarela. Achei isso genial: pra mim, amarelo é a cor mais bonita que existe. Mas não era um amarelo sempre igual; às vezes era forte, mas depois ficava fraco; não sei se porque ele já tinha desbotado um pouco, ou porque já nasceu assim mesmo, resolvendo que ser sempre igual é muito chato.

“Não quero mandar sozinho! Quero um galinheiro com mais galos! Quero as galinhas mandando junto com os galos!”
– Que legal!
– Legal coisa nenhuma; me levaram preso.
– Mas por quê?
– Pra eu aprender a não ser um galo diferente. Me botaram num quartinho escuro. Tão escuro que quando eu saí de lá tava todo preto. Só depois é que a cor foi voltando. Fiquei preso um tempão; sofri à beça. Aí, um dia, eles me soltaram. E foram logo dizendo: “Daqui pra frente você vai ser um tomador-de-conta-de-galinha como o seu pai era, como o seu avô era, como o seu bisavô era, como o seu tataravô era – senão volta pra prisão.”

– Às vezes a gente quer muito uma coisa e então acha que vai querer a vida toda. Mas aí o tempo passa. E o tempo é o tipo do sujeito que adora mudar tudo. Um dia ele muda você e pronto: você enjoa de ser pequena e vai querer crescer.
– Será?
– É bem capaz.

Mas eu fiquei parada, querendo entender melhor a gente daquela casa. Apontei o homem:
– Ele é teu pai?
– É. – E aí ela apresentou os três: – Meu pai, minha mãe e meu avô.
Eles me deram um sorriso legal e eu cochichei pra menina:
– Por que é que ele tá cozinhando?
Ela me olhou espantada:
– O quê?
Perguntei ainda mais baixo:
– Por que é que ele tá cozinhando e tua mãe tá soldando panela?
– Porque ela hoje já cozinhou bastante e ele já consertou uma porção de coisas: e eu também já estudei um bocado e meu avô soldou muita panela: tava na hora de trocar tudo.
– Por quê?
– Pra ninguém achar que tá fazendo uma coisa demais. E pra ninguém achar também que está fazendo uma coisa menos legal do que o outro.