Tordo, João. O bom inverno. Língua Geral. Rio de
Janeiro/RJ; 2012; 426 páginas.
Breve relato do autor:
João Tordo é um
jornalista e escritor português, influenciado pela escrita de autores como
Edgar Allan Poe, Herman Melville ou Dostoiévski, e pela literatura policial e
de mistério, construindo narrativas dentro de narrativas e absorvendo o leitor por
meio da imersão emocional nas suas histórias.
Dados da obra:
A trama gira em
torno de um escritor prematuramente frustrado e hipocondríaco, que viaja até
Budapeste para um encontro literário. Coxo, portador de uma bengala, e
planejando uma viagem rápida, ele acaba por conhecer Vincenzo Gentile, um
escritor italiano mais jovem, mais enérgico, que o convence a ir da Hungria até
Itália, onde um famoso produtor de cinema tem uma casa de província no meio de
um bosque e onde passa a temporada de verão à qual chama de o Bom Inverno. Ali
acontece um crime, ou melhor crimes, cuja narrativa lembra os romances
policiais de Agatha Christie.
Passagens:
Nina apagou o
cigarro no pires do café. “Tinha negócios privados em Portugal. Na quinta onde
eu cresci, no meio do Alentejo”. Disse a palavra em português. “O lugar mais
bonito que possa imaginar. Mas a herança mais importante que ele me deixou não
foi essa”.
“Então?”
“Foi o amor aos
livros. Era muito nova quando ele morreu e, nessa altura, ainda não me
apaixonara pelas palavras. Hoje lembro-me muitas vezes da enorme biblioteca do
meu avô. Julgo que nunca o vi sem um livro na mão.”
“É só um negativo”,
disse Nina. “Não representa nada mais do que isso.”
“Não é completamente
verdade”, argumentei. “Estou em crer que a ciência julgou, durante muito tempo,
que poderia salvar não apenas o corpo, mas também a alma. E que a alma estava
guardada algures dentro de nós, uma coisa qualquer que nunca ninguém tinha
visto, uma luz ou um sopro, uma substância esquiva. Depois, a ciência avança e
a primeira representação que nos oferece do interior do homem – onde,
supostamente, reside essa tal alma eterna parece uma coisa saída de um filme de
terror. É sinceramente, de se perder a esperança.”
Nina pensou durante
uns momentos.
“Se estiver a dizer
disparates, corrige-me. Mas cada vez mais acredito que só vale a pena ler um
romance – neste caso, um bom romance – quando temos uma pergunta para qual não
sabemos a resposta. Ou, mesmo que tenhamos encontrado a resposta, se
precisarmos de confirmação.”
Fiquei intrigado.
Pedi-lhe nova explicação.
“Pensa bem: o mesmo
se aplica a escrever livros, ou não? Não será o escritor, verdadeiramente, o
único interessado naquilo que escreve? Quero dizer, porquê andar a inventar
histórias a torto-e-a-direito, a menos que essas histórias sejam a solução,
temporária ou absoluta, para um enigma qualquer?”
Franzi o sobrolho.
“Escreve?”
“Porquê?”
“Porque tem uma
pergunta na cabeça para a qual não sabe a resposta.”
“Portanto, tenta
dar-lhe resposta, ordenando o mundo com suas palavras.”
“Ou desordenando-o
ainda mais.”
“Pode fracassar.”
“Precisamente.”
“Embora só ele
conheça o significado desse fracasso.”
“Os teus balões?”
“Arte perecível.
Arte que não pode ser colocada num museu e que não pode ser restaurada. Arte
que demora tanto tempo a projetar e a construir e tão pouco tempo a desfrutar.
Arte, por assim dizer, marcada pela finitude.”
“... Acorrentado
pelos desejos. Ou se fores crente, pelos seus pecados. Na religião há pecados
veniais e pecados mortais; no meu bosque há balões pequenos e balões grandes.
Sempre que um deles desaparece de vista – sempre que um deles voa tão alto que
se transforma numa miragem, numa sombra de qualquer coisa que nunca chegou a
ser... São como estrelas distantes cuja luz é uma falsa indicação de vida.
Sempre que um deles desaparece na direção do mar, há alguma coisa em mim – e
também no Don – que desaparece com eles. Um peso, ou um desejo, ou uma ilusão.
Uma dor, se quiseres.”
Elsa olhou para os
pés descalços que balançavam da beira da cama.
“Escuta”, pediu, num
tom doce. “Tens de compreender que não é possível saber tudo. Existem certos
momentos que, se não os vivermos, são impossíveis de resgatar através dos
outros.”
“a vida de nada
valia por ser um ensaio de si própria, um ensaio para uma peça que estava a
acontecer ao mesmo tempo que era ensaiada.” – Milan Kundera.
“... É um erro
comum, aliás; como é que se costuma dizer por aí? Que o amor liberta? Que a
verdade liberta? E o trabalho também liberta o homem? Os filhos-da-puta dos
fachos quiseram convencer toda a gente e escreveram-no à entrada de Auchwitz, Arbeit macht hei, e a verdade é que os
judeus trabalharam e depois continuaram presos, presos, presos. E, a seguir a
isso, mortos”. Bosco inspirou fundo e depois expirou. “Desengana-te: o amor não
é senão peso. É a coisa que com mais força nos prende a este mundo. Significa
que estamos agarrados às coisas com unhas e dentes; que nos recusamos a
deixá-las para trás numa aflição patética. Porque é que te parece que
enterramos os mortos? Porque eles carregam consigo o peso da vida: mesmo no
leito de morte, o homem quer levar consigo as coisas que ama. É uma patologia
que parece não ter fim: mesmo na morte, queremos arrastar conosco aos vivos.
Queremos levar o mundo para a cova, arrastar tudo para o Inferno. Somos mortos
que não querem morrer, entendes? Mortos que se recusam a aceitar o destino.”
“Que destino é
esse?”
O catalão olhou na
direção da porta que um vento repentino fez titubear.
“Sermos leveza ao
invés de peso”, disse.
“Como os balões
chineses. Insuflamos, expandimo-nos, subimos ao céu e, depois, desaparecemos
para sempre. Não há dois balões iguais. Cada um só sobe uma vez, só faz uma
viagem e, sendo assim, cada balão é único. O nosso propósito sempre foi esse
sermos leveza. Somos únicos. Invadirmos gloriosamente os céus com a nossa
chama. Não temeremos a morte”.
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