Telles, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. Nova Fronteira. Rio de Janeiro/RJ; 1986; 208 páginas.
Breve
relato da autora:
Lygia Fagundes Telles é uma escritora
brasileira, que recebeu o Prémio Camões em 2005. É membro da Academia
Paulista de Letras desde 1982, da Academia Brasileira de Letras desde 1985 e da
Academia das Ciências de Lisboa desde 1987.
Dados da obra:
Reunião
de narrativas escritas entre 1949 e 1969, Antes
do baile verde é considerado por muitos críticos o livro de contos
literariamente mais bem-sucedido de Lygia Fagundes Telles. As situações
narradas são as mais diversas.
Passagens:
Eu sei.
Mas para que serve? – insistiu. E apressando-se antes de ser interrompido: –
Veja, Lorena, aqui na mesa este anjinho vale tanto quanto o peso de papel ou
aquele cinzeiro sem cinza, quer dizer, não tem sentido nenhum. Quando olhamos
para as coisas, quando tocamos nelas é que começam a viver como nós, muito mais
importantes do que nós, porque continuam. O cinzeiro recebe a cinza e fica
cinzeiro, o vidro pisa o papel e se impõe...
– Não,
não adianta. – Colocou o anjo na mesa. E apertou os olhos molhados de lágrimas,
de costas para ela e inclinado para o abajur. – Veja, Lorena, veja... Os
objetos só têm sentido quando têm sentido, fora disso... Eles precisam ser
olhados, manuseados. Como nós. Se ninguém me ama, viro uma coisa ainda mais
triste do que essas, porque ando, falo, indo e vindo como uma sombra, vazio,
sem cinza, o anjo sem anjo, fico aquela adaga ali fora do peito. Para que serve
uma adaga fora do peito? – perguntou e tomou a adaga entre as mãos...
... As
unhas de Francisca eram curtas, unhas de mãos eficientes, com uma discreta
camada de esmalte incolor. Unhas e mãos de velha, incrível como as mãos
envelheceram antes. Depois foram os cabelos. Podia ter reagido. Não reagiu.
Parecia mesmo satisfeita em se entregar, pronto, agora vou ficar velha. E
ficou...
... Tinha juventude. “Ju-ven-tu-de...” – murmurou, voltando o olhar mortiço em direção ao espelho. Ela adorava espelhos, dezenas de espelhos por toda a casa. Aquele ali então era o pior, aquele que apanhava o corpo inteiro, sem deixar escapar nada. Com ele aprendera que envelhecer é ficar fora de foco: os traços vão ficando imprecisos e o contorno do rosto acaba por se decompor como um pedaço de pão a se dissolver na água.
...
Sentira-se um outro homem. Outro homem. Que anúncio usava essa frase? “Fiquei
um outro homem”. O anúncio estava num bonde, devia ser de um xarope. Fazia
tanto tempo. Saudade de andar de bonde, ir lendo os anúncios, os avisos tão
cordiais, tão prudentes: “Espera até o bonde parar”. Tempo de prudência, tempo
da consideração. Era bom deslizar pelas ruas desertas, cochilar naquele balanço
para a direita, para a esquerda, como num berço...
Fixei-me
nas nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia
contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata
fatos sem ter participado deles realmente. Como se não bastasse a pobreza que
espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, e ainda via
pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem
a menor revolta, confiante. Intocável? Apatia? Não, não podiam ser de uma
apática aqueles olhos vivíssimos e aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma
obscura irritação me fez sorrir.
O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltra-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte...
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