Llosa, Mario Vargas. Tia Julia e o Escrevinhador. Alfaguara-Objetiva. Rio de Janeiro /
RJ; 20077; 359 páginas.
Breve relato do autor:
Mario
Vargas Llosa é um escritor, jornalista, ensaísta e político peruano, que ganhou
o Prêmio Nobel de Literatura em 2010. Ele ganhou notoriedade literária com a
publicação do romance A Cidade e os Cães (1961). Mudou para Paris nos anos de
1960, e lecionou em diversas universidades americanas e europeias, ao longo dos
anos.
Dados da obra:
Mesclando
humor e romance, o escritor narra a história de Varguitas, um jovem peruano com
ambições literárias que se apaixona por uma tia com quase o dobro da sua idade.
Em paralelo a esse romance proibido, na Lima dos anos 50, Varguitas conhece
Pedro Camacho, autor excêntrico de radionovelas cujos enredos mirabolantes
fascinam os peruanos. As novelas vão muito bem, até o dia em que Pedro Camacho,
sobrecarregado, começa a confundir enredos e personagens.
Passagens:
Escrevo. Escrevo que escrevo. Mentalmente me vejo escrever
que escrevo e também posso me ver a me ver escrevendo. Lembro de mim já
escrevendo e também me vendo escrever. E me vejo lembrando que me vejo escrever
e me lembrando que me vejo lembrando que escrevia e escrevo me vendo escrever
que me lembro de ter me visto escrever que me via escrevendo que lembrava de
ter me visto escrever que escrevia e que escrevia que escrevo que escrevia.
Também posso me imaginar escrevendo que já havia escrito que me imaginaria escrevendo
que havia escrito que imaginava a mim escrevendo que me vejo escrever que
escrevo.
Salvador Elizondo, o
grafógrafo.
Tentei uma
investigação parecida em outras casas de parentes e os resultados foram
vagos. As tias Gaby, Laura, Olga e
Hortensia gostavam das novelas porque eram divertidas, tristes ou fortes,
porque as distraíam e faziam sonhar, viver coisas impossíveis na vida real,
porque mostravam algumas verdades ou porque sempre se tinha um pouquinho de
espírito romântico. Quando perguntei por que gostavam mais que dos livros,
protestaram: que bobagem, como dá para comparar, livros eram cultura, as
novelas simples disparates para passar o tempo. Mas o certo é que viviam
grudadas no rádio e que eu nunca tinha visto nenhuma delas abrir um livro...
... O mecânico tinha
batido na porta assim, e, quando ela abriu, tinha olhado para ela assim e
falado assim, e depois tinha se ajoelhado assim, jurando que a amava assim.
Aturdidos, hipnotizados, o juiz e o secretário viam a menina-mulher adejar como
uma ave, empinar como uma bailarina, agachar-se e subir, sorrir e zangar-se,
modificar a voz e duplicá-la, imitando a si mesma e a Gumercindo Tello e, por
fim, cair de joelhos e declarar (-se, -lhe) seu amor...
Esses encontros nos
cafés do centro de Lima eram pouco pecaminosos, longas conversas muito
românticas, “fazendo empanadinhas”, nos olhando nos olhos e, se a topografia do
local permitia, roçando os joelhos. Só nos beijávamos quando ninguém podia nos
ver, o que raramente acontecia, porque a essas horas os cafés estavam sempre
cheios de grossos funcionários de escritório. Falávamos de nós, claro, dos
perigos que corríamos de ser surpreendidos por algum membro da família, da
maneira de evitar essas perigos, contávamos um ao outro, com riqueza de detalhes,
tudo o que tínhamos feito desde o último encontro (quer dizer, algumas horas
antes ou no dia anterior), mas, por outro lado, jamais fazíamos nenhum projeto
para o futuro. O porvir era um assunto tacitamente abolido de nossas conversas,
sem dúvida porque, tanto ela como eu, estávamos convencidos de que nossa
relação não tinha nenhum. Porém, penso que isso que havia começado como uma
brincadeira foi se tornando coisa séria nos castos encontros dos cafés
enfumaçados do centro de Lima. Foi aí que, sem nos darmos conta, fomos nos
apaixonando.
Prometi fazer o
possível, mas sem muitas esperanças porque o escriba era um homem de convicções
inflexíveis. Eu tinha chegado a me sentir amigo dele; além da curiosidade
entomológica que me inspirava, tinha apreço por ele. Mas seria recíproco? Pedro
Camacho não parecia capaz de perder seu tempo, sua energia, na amizade nem em
nada que o distraísse de sua arte,
isto é, seu trabalho ou vício, essa urgência que eliminava homens, coisas,
apetites. Embora fosse verdade que a mim tolerava mais que a outros. Tomávamos
café (ele hortelã com erva-cidreira) e eu ia a seu cubículo e lhe servia de
pausa entre duas páginas. Escutava-o com suma atenção e isso talvez o
lisonjeasse; talvez me tivesse por um discípulo, ou, simplesmente, era para ele
o que é o cachorrinho de colo para a solteirona e as palavras cruzadas para o
aposentado: alguém, ou alguma coisa com que preencher os vazios.
Ele começou com
quatro novelas por dia, mas em vista do sucesso, foram aumentando até dez, que
eram transmitidas de segunda a sábado, com Curaçao de meia hora cada capítulo
(na verdade, 23 minutos, pois a publicidade açambarcava sete). Como dirigia e
interpretava todos, devia permanecer no estúdio umas sete horas diárias,
calculando que o ensaio e a gravação de cada programa durassem quarenta minutos
(entre dez e 15 para sua arenga e os ensaios). Escrevia as novelas à medida que
iam sendo transmitidas; constatei que cada capítulo lhe tomava o dobro do tempo
de sua interpretação, uma hora. O que significava, de qualquer modo, umas dez
horas na máquina de escrever. Isso diminuía um pouco graças aos domingos, seu
dia livre, que ele, claro, passava no seu cubículo, adiantando o trabalho da
semana. Seu horário era, portanto, de 15 a 16 horas de segunda a sábado e de
oito a dez nos domingos. Todas elas praticamente produtivas, de rendimento artístico sonante.
– Meus escritos se
conservam num lugar mais indelével do que os livros – me instruiu, no ato: – A
memória dos ouvintes.
A lavadeira Teresita
praticava uma filosofia de criação intuitivamente inspirada em Esparta ou em
Darwin que consistia em fazer saber a seus filhos que, se tinham interesse em
continuar nesta selva, tinham de aprender a receber e dar mordidas, e que essa
história de tomar leite e comer era assunto que dizia respeito inteiramente a
eles desde os 3 anos de idade, porque, lavando roupa dez horas por dia e
distribuindo-a por Lima outras oito horas, só conseguiam sobreviver ela e as
crias que não tinham completado a idade mínima para dançar com as próprias
pernas.
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