Cortázar, Julio. O Jogo da Amarelinha. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro / RJ; 1987;
521 páginas.
Breve
relato do autor:
Julio Cortázar foi um escritor e intelectual
argentino, é considerado um dos autores mais inovadores e originais do seu
tempo. Mestre no conto e na narrativa curta.
Dados da
obra:
Passagens:
Preferíamos o encontro
casual na ponte, no terraço de um café num cine-clube ou, talvez, curvados
sobre um gato em qualquer pátio do bairro latino. Andávamos por Paris sem nos
procurarmos, mas sabendo sempre que andávamos para nos encontrar.
E repare, Maga, que
acabávamos de travar conhecimento e a vida já tramava o necessário para que nos
desencontrássemos minuciosamente. Como você não sabia dissimular, descobri
quase imediatamente que, para vê-la como eu queria, era necessário começar por
fechar os olhos e, então, surgiam coisas, primeiro como estrelas amarelas
(movendo-se como gelatina de veludo), depois como cachoeiras vermelhas de
jovialidade e das horas, ingresso paulatino num mundo-Maga que era a falta de
jeito e a confusão, mas também levando a assinatura da aranha Klee, do circo
Miró, dos espelhos cinzentos Vieira da Silva, num mundo onde você se movia como
um cavalo de xadrez que se movesse como uma torre que se movesse como um bispo.
Nunca consegui
resistir ao desejo de chamá-la para o meu lado, sentindo-a cair pouco a pouco
sobre mim, desdobrar-se outra vez, depois d ter estado por um momento tão só e
tão apaixonada diante da eternidade do seu corpo.
... Tinha a
felicidade de poder acreditar sem ver, de poder formar um corpo com a duração,
com o contínuo da vida. Tinha a felicidade de se encontrar dentro do quarto, de
ter direito de cidadania em tudo o que tocava e em todos aqueles com quem
convivia, peixe nadando no rio, folha na árvore, nuvem no céu, imagem no poema.
Peixe, folha, nuvem, imagem: exatamente isso, a não ser que...
A Maga desconfiava
um pouco. Admirava imensamente Oliveira e Etienne, capazes de discutir durante
três horas sem parar. Em volta de Etienne e Oliveira, havia algo como um
círculo de giz e ela queria entrar nesse circulo, compreender por que razão o
princípio da indeterminação era tão importante na literatura, por que motivo
Morelli, sobre quem eles tanto falavam, a quem tanto admiravam, pretendia fazer
do seu livro uma bola de cristal, no qual o micro e o macrocosmo se uniam numa
visão aniquilante.
... Entre a Maga e
eu cresce um canavial de palavras, estamos separados só por algumas horas e
alguns quarteirões e já a minha pena se
chama pena, meu amor se chama meu
amor... Irei sentindo cada vez menos e recordando cada vez mais, mas o que é
recordação, afinal, senão o idioma dos sentimentos, um dicionário de rostos e
dias e perfumes que voltam como os verbos e os adjetivos no discurso,
adiantando-se disfarçados, à coisa em si, ao presente puro, entristecendo-nos
ou lecionando-nos vicariamente até que o próprio ser se torna vigário, o rosto
que olha para trás abre muito os olhos, o verdadeiro rosto se mancha pouco a
pouco como nas velhas fotografias e Jano, de repente, é igual a qualquer um de
nós.
– Como é larga esta
rua – exclamou Talita, olhando para baixo. – É muito mais larga do que quando a
olhamos da janela.
– As janelas são os
olhos da cidade – comentou Traveler – e naturalmente deformam tudo o que vêm.
Agora, você está num ponto de grande pureza, e talvez esteja vendo as coisas como
um pombo ou um cavalo que não sabem que têm olhos.
... Você compreende,
de vez em quando ocorre-me que lhe poderia dizer... Não sei, talvez no momento
as palavras servissem de alguma coisa, nos servissem. Mas como não são as
palavras da vida cotidiana e do mate no pátio, do bate-papo lubrificado, a
gente recua, o melhor amigo é aquele a quem menos se podem dizer coisas assim.
Nunca lhe aconteceu confiar-se muito mais a um outro cara qualquer?
– É possível –
concordou Traveler, afinando a guitarra. – O ruim é que com esses princípios já
não se sabe para que servem os amigos.
– Servem para estar
aí e, um dia, quem sabe?
Longo bate-papo com
Traveler sobre a loucura. Falando dos sonhos, demo-nos conta, quase ao mesmo
tempo, de que certas estruturas sonhadas seriam formas correntes de loucura, a
menos que continuassem na vigília. Quando sonhamos nos é dado exercitar de
graça nossa aptidão para a loucura. Suspeitamos, ao mesmo tempo, que toda loucura
é um sonho que se fixa.
Sabedora do povo: “É
um pobre louco, um sonhador...”
Uma mesma situação e
duas versões... Fico pensando em todas as folhas que serei eu a não ver o
coletor de folhas secas, em tanta casa que haverá no ar e que estes olhos não
veem, pobres morcegos de romances e cinemas e flores dissecadas. Por todos os
lados haverá abajures, haverá folhas que não verei.
Outra maneira de
tentar dizê-lo: O defectivo sente-se mais como uma pobreza intuitiva do que
como uma mera falta de experiência. Na verdade, não me aflijo muito por não ter
lido toda a obra de Jouhandeau, sinto no máximo a melancolia de uma vida
demasiado curta para tantas bibliotecas, etc. A falta de experiência é
inevitável, quando leio Joyce estou sacrificando automaticamente outro livro e
vice-versa, etc.
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