Coetzee, J.M. Verão. Companhia das Letras; São Paulo
/ SP; 2010; 275 páginas.
Breve relato do autor:
J. M. Coetzee nasceu na Cidade do Cabo,
na África do Sul. É um dos principais escritores contemporâneos da língua
inglesa, e já recebeu diversos prêmios por sua obra, entre eles o Nobel, em
2003, e – caso único – dois Booker Prize, em 1983, por Vida e época de Michael K, e em 1999, por Desonra.
Dados da obra:
Verão é o terceiro
livro da trilogia Cenas da vida na
província, composta também por Infância
e Juventude. Coetzee lança mão de
artifícios narrativos refinados para compor um relato de ficção autobiográfica,
construído de maneira múltipla e indireta. A história é contada pelo
pesquisador inglês Vincent, interessado na vida de John Coetzee, autor que já
morreu. Para escrever a biografia do escritor, Vincent recorre a outras fontes:
os Cadernos do autor, com anotações autobiográficas, e entrevistas com pessoas
que o conheceram, concentrando-se nos anos 1970, período que precede o
reconhecimento literário de Coetzee.
Passagens:
Pode existir uma
laje bem assentada cujo bom assentamento é evidente para todo mundo. As lajes
que está assentando durarão mais até que sua estada na terra; e nesse caso ele
terá, em certo sentido, enganado a morte. Uma pessoa pode passar o resto da
vida cimentando lajes e todo noite cair no mais profundo sono, cansada com a
dor do esforço honesto.
Tenho plena
consciência do quanto eu estava me portando como um personagem de livro – como
uma daquelas mulheres idealistas em Henry James, digamos decididas, apesar do
que lhes diz o instinto, a fazer a coisa moderna, difícil. Principalmente
quando as minhas colegas, as esposas dos colegas de Mark na firma, procuravam
orientação não em Henry James nem George Eliot, mas na Vogue, na Marie Claire ou
na Fair Lady. Mas também, para que
servem os livros senão para mudar a nossa vida? O senhor viria até Kingston
para ouvir o que eu tenho a dizer sobre o John, se não acreditasse que os
livros são importantes?
“Você acredita mesmo
nisso?”, ele perguntou. “Que livros dão sentodo às nossas vidas?”
“Acredito”, eu
respondi. “Um livro deve ser um machado para abrir o mar congelado dentro de
nós”. O que mais ele seria?
“Um gesto de recusa
diante da época. Uma aposta na imortalidade.”
Pragmatismo sempre ganha
de princípios, é assim que as coisas são.
“Tudo que você tem
no coração... O que isso tem a ver com Eugene Marais?”
“Simplesmente que eu
entendo o que o velho babuíno macho estava pensando enquanto olhava o sol se
pôr, o líder do bando, aquele de quem Marais era mais próximo. Nunca mais, ele pensava: só uma vida e nunca mais. Nunca, nunca,
nunca. É isso que o Karoo faz comigo também. Me enche de melancolia. Me
estraga para a vida inteira.”
Ela morde a língua.
Esqueceu-se: não se pede a um homem que mostre seus poemas, não na África do
Sul, não sem garantir a ele previamente que ETA tudo bem, que ninguém vai
caçoar dele. Que país, em que a poesia não é atividade varonil, mas território
de crianças oujongnooiens [solteironas]
– oujongnooiens de ambos os sexos!
Como foi que Totuis ou Louis Leipoldt conseguiram, ela não consegue imaginar.
Ela gostaria de
oferece a eles dois um café na lanchonete, gostaria de sentar com eles de um
jeito amigo, normal, mas claro que não se podia fazer isso sem provocar uma
confusão. Que chegue logo o tempo, ó
Senhor, ela reza para si mesma em que toda essa besteira do apartheid esteja enterrada e esquecida.
Mas não é assim que
se dança! Não é assim que se dança! Dança é encarnação. Na dança não é o mestre
titereiro na cabeça que comanda e o corpo acompanha, é o corpo sozinho que
comanda, o corpo com sua alma, o corpo-alma. Porque o corpo sabe! Sabe! Quando
o corpo sente o ritmo por dentro, ele não precisa pensar. É assim que nós somos
se somos humanos. Por isso é que títeres de madeira não podem dançar. A madeira
não tem alma. A madeira não sente o ritmo.
Ele prossegue: “Esse
é o jeito britânico: atirar os concorrentes na arena e esperar para ver o que
acontece”. Ele vai ter de se acostumar de novo com o jeito britânico de fazer
as coisas, em toda a sua brutalidade. Um naviozinho apertado, a Grã-Bretanha,
lotado até as amuradas. Cão devora cão. Cães rosnando e avançando uns nos
outros, cada um guardando seu pequeno território. O jeito norte-americano, em
comparação, decoroso, gentil até. Mas também, há mais espaço nos Estados
Unidos, mais espaço para urbanidade.
As fileiras da
profissão de professor são como o senhor deve saber, cheias de refugiados e
desajustados.
Aos olhos de
Coetzee, nós, seres humanos, nunca abandonaremos a política porque a política é
muito conveniente e muito atraente como palco onde expressar nossas emoções
mais baixas. Por emoções baixas quero dizer ódio, rancor, desprezo, ciúme, sede
de sangue e assim por diante. Em outras palavras, a política é um sintoma de
nosso estado decaído e expressa esse estado decaído.
Mesmo a política da libertação?
Se o senhor se
refere à política da luta de libertação sul-africana, a resposta é sim. Se
libertação significava libertação nacional, a libertação da nação negra da
África do Sul. John não tinha nenhum interesse nela.
Nós era
principalmente a gente de cor. É um termo que eu só uso com relutância, para
abreviar. Ele – Coetzee – evitava esse termo o quanto podia. Eu mencionei o
utopismo dele. Evitar esse termo era outro aspecto desse utopismo. Ele ansiava
por um dia em que todo mundo na África do Sul não se chamasse de nada, nem de
africano, nem de europeu, nem de branco, nem de negro, nem de nada, em que as
histórias familiares estivessem tão emaranhadas e misturadas que as pessoas
fossem etnicamente indistinguíveis, ou seja – pronuncio de novo essa palavra
maldita – de cor. Ele chamava isso de futuro brasileiro. Ele aprovava o Brasil
e os brasileiros. Claro que nunca tinha estado no Brasil.
Não me lembro de
todos. Depois de Desonra eu perdi o
interesse. No geral, eu diria que o trabalho dele é desprovido de ambição. O
controle dos elementos é muito estrito. Em nenhum ponto você tem a sensação de
um escritor que deforma sua mídia a fim de dizer o que nunca foi dito, o que,
para mim, é a marca da grande literatura. Muito impassível, muito organizado,
eu diria. Muito fácil. Muito desprovido de paixão. Isso é tudo.
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