quarta-feira, 16 de julho de 2014

Verão

Coetzee, J.M. Verão. Companhia das Letras; São Paulo / SP; 2010; 275 páginas.

Breve relato do autor:

J. M. Coetzee nasceu na Cidade do Cabo, na África do Sul. É um dos principais escritores contemporâneos da língua inglesa, e já recebeu diversos prêmios por sua obra, entre eles o Nobel, em 2003, e – caso único – dois Booker Prize, em 1983, por Vida e época de Michael K, e em 1999, por Desonra.

Dados da obra:

Verão é o terceiro livro da trilogia Cenas da vida na província, composta também por Infância e Juventude. Coetzee lança mão de artifícios narrativos refinados para compor um relato de ficção autobiográfica, construído de maneira múltipla e indireta. A história é contada pelo pesquisador inglês Vincent, interessado na vida de John Coetzee, autor que já morreu. Para escrever a biografia do escritor, Vincent recorre a outras fontes: os Cadernos do autor, com anotações autobiográficas, e entrevistas com pessoas que o conheceram, concentrando-se nos anos 1970, período que precede o reconhecimento literário de Coetzee.

Passagens:

Pode existir uma laje bem assentada cujo bom assentamento é evidente para todo mundo. As lajes que está assentando durarão mais até que sua estada na terra; e nesse caso ele terá, em certo sentido, enganado a morte. Uma pessoa pode passar o resto da vida cimentando lajes e todo noite cair no mais profundo sono, cansada com a dor do esforço honesto.

Tenho plena consciência do quanto eu estava me portando como um personagem de livro – como uma daquelas mulheres idealistas em Henry James, digamos decididas, apesar do que lhes diz o instinto, a fazer a coisa moderna, difícil. Principalmente quando as minhas colegas, as esposas dos colegas de Mark na firma, procuravam orientação não em Henry James nem George Eliot, mas na Vogue, na Marie Claire ou na Fair Lady. Mas também, para que servem os livros senão para mudar a nossa vida? O senhor viria até Kingston para ouvir o que eu tenho a dizer sobre o John, se não acreditasse que os livros são importantes?

“Você acredita mesmo nisso?”, ele perguntou. “Que livros dão sentodo às nossas vidas?”
“Acredito”, eu respondi. “Um livro deve ser um machado para abrir o mar congelado dentro de nós”. O que mais ele seria?
“Um gesto de recusa diante da época. Uma aposta na imortalidade.”

Pragmatismo sempre ganha de princípios, é assim que as coisas são.

“Tudo que você tem no coração... O que isso tem a ver com Eugene Marais?”
“Simplesmente que eu entendo o que o velho babuíno macho estava pensando enquanto olhava o sol se pôr, o líder do bando, aquele de quem Marais era mais próximo. Nunca mais, ele pensava: só uma vida e nunca mais. Nunca, nunca, nunca. É isso que o Karoo faz comigo também. Me enche de melancolia. Me estraga para a vida inteira.”

Ela morde a língua. Esqueceu-se: não se pede a um homem que mostre seus poemas, não na África do Sul, não sem garantir a ele previamente que ETA tudo bem, que ninguém vai caçoar dele. Que país, em que a poesia não é atividade varonil, mas território de crianças oujongnooiens [solteironas] – oujongnooiens de ambos os sexos! Como foi que Totuis ou Louis Leipoldt conseguiram, ela não consegue imaginar.

Ela gostaria de oferece a eles dois um café na lanchonete, gostaria de sentar com eles de um jeito amigo, normal, mas claro que não se podia fazer isso sem provocar uma confusão. Que chegue logo o tempo, ó Senhor, ela reza para si mesma em que toda essa besteira do apartheid esteja enterrada e esquecida.

Mas não é assim que se dança! Não é assim que se dança! Dança é encarnação. Na dança não é o mestre titereiro na cabeça que comanda e o corpo acompanha, é o corpo sozinho que comanda, o corpo com sua alma, o corpo-alma. Porque o corpo sabe! Sabe! Quando o corpo sente o ritmo por dentro, ele não precisa pensar. É assim que nós somos se somos humanos. Por isso é que títeres de madeira não podem dançar. A madeira não tem alma. A madeira não sente o ritmo.

Ele prossegue: “Esse é o jeito britânico: atirar os concorrentes na arena e esperar para ver o que acontece”. Ele vai ter de se acostumar de novo com o jeito britânico de fazer as coisas, em toda a sua brutalidade. Um naviozinho apertado, a Grã-Bretanha, lotado até as amuradas. Cão devora cão. Cães rosnando e avançando uns nos outros, cada um guardando seu pequeno território. O jeito norte-americano, em comparação, decoroso, gentil até. Mas também, há mais espaço nos Estados Unidos, mais espaço para urbanidade.

As fileiras da profissão de professor são como o senhor deve saber, cheias de refugiados e desajustados.

Aos olhos de Coetzee, nós, seres humanos, nunca abandonaremos a política porque a política é muito conveniente e muito atraente como palco onde expressar nossas emoções mais baixas. Por emoções baixas quero dizer ódio, rancor, desprezo, ciúme, sede de sangue e assim por diante. Em outras palavras, a política é um sintoma de nosso estado decaído e expressa esse estado decaído.
Mesmo a política da libertação?
Se o senhor se refere à política da luta de libertação sul-africana, a resposta é sim. Se libertação significava libertação nacional, a libertação da nação negra da África do Sul. John não tinha nenhum interesse nela.

Nós era principalmente a gente de cor. É um termo que eu só uso com relutância, para abreviar. Ele – Coetzee – evitava esse termo o quanto podia. Eu mencionei o utopismo dele. Evitar esse termo era outro aspecto desse utopismo. Ele ansiava por um dia em que todo mundo na África do Sul não se chamasse de nada, nem de africano, nem de europeu, nem de branco, nem de negro, nem de nada, em que as histórias familiares estivessem tão emaranhadas e misturadas que as pessoas fossem etnicamente indistinguíveis, ou seja – pronuncio de novo essa palavra maldita – de cor. Ele chamava isso de futuro brasileiro. Ele aprovava o Brasil e os brasileiros. Claro que nunca tinha estado no Brasil.

Não me lembro de todos. Depois de Desonra eu perdi o interesse. No geral, eu diria que o trabalho dele é desprovido de ambição. O controle dos elementos é muito estrito. Em nenhum ponto você tem a sensação de um escritor que deforma sua mídia a fim de dizer o que nunca foi dito, o que, para mim, é a marca da grande literatura. Muito impassível, muito organizado, eu diria. Muito fácil. Muito desprovido de paixão. Isso é tudo. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.