Telles, Lygia
Fagundes. Passaporte para a China. Companhia
das Letras, São Paulo / SP, 2011; 89 páginas.
Breve relato do autor:
Lygia Fagundes Telles é uma
escritora brasileira, que recebeu o Prémio Camões em 2005. É membro da Academia
Paulista de Letras desde 1982, da Academia Brasileira de Letras desde 1985 e da
Academia das Ciências de Lisboa desde 1987.
Dados da obra:
Em 1960, delegações
de todo o mundo participaram da festa do 11o. aniversário do socialismo chinês.
Embora não se considerasse comunista, Lygia Fagundes Telles foi incluída no
grupo brasileiro e resolveu enfrentar o pânico dos “aviões a jato”. Antes de
embarcar, ela recebeu outra proposta: enviar relatos da viagem para o jornal
Última Hora. Daí surgiram 29 crônicas, que formam um instrutivo, comovente e
divertido diário de bordo, ambientado em várias cidades. O livro conta ainda
com um pequeno caderno de fotos tiradas durante a viagem.
Passagens:
A voz anuncia em
francês o retorno ao avião. Sigo pelo aeroporto no passo do constrangimento,
ah! Seria bom ficar mais tempo em Dacar mas é preciso prosseguir e ser amável
com o comissário de bordo, um jovem sorridente que nos deseja uma boa viagem!
Abro um sorriso amarelo e penso no poema de Carlos Drummond de Andrade, Cantaremos o medo da morte e o medo de
depois da morte, / depois morreremos de medo / e sobre nossos túmulos nascerão
flores amarelas e medrosas.
Outono e a folhagem
das árvores com um tom de ouro antigo. Um frio suave corre na brisa. Acendem-se
as primeiras luzes. Vou lendo nas tabuletas os nomes das praças, das ruas e muitas
são minhas conhecidas pois por elas passaram tantas personagens de livros que
li desde a adolescência. A emoção me enternece, inútil pensar na literatura
porque mais bela que a palavra escrita é aquele chafariz no meio da praça. E a
dignidade dos prédios que sabem que não vão ser demolidos porque foram feitos
para permanecer. Não, não é como no Brasil onde prédios de dez anos são
considerados velharias. Depressa! É preciso demolir para reconstruir que para
isso foram feitas as picaretas. Tínhamos algumas belas construções, mas somos
agitados demais para pensarmos em tradição.
Nas ruas, as
vitrinas acesas e tanto movimento e tantas luzes, ah! Que delícia ir assim
livre na noite cálida. Escreveu Erico Veríssimo que as cidades são masculinas e
femininas como os seres humanos. Quanto a Paris, ele achava que era uma cidade
hermafrodita por reunir os caracteres dos dois sexos. Não concordo com o nosso
romancista: Paris é do sexo feminino, creio que não existe cidade mais feminina
do que Paris, mulher vaidosa e assim felina feito uma gata sensual que se
oferece ao turista deslumbrado mas esconde a face verdadeira, a face profunda
que fica oculta e que só obedece à voz do donos e esse dono é francês.
Fecho os olhos e vou
lembrando tudo o que sei sobre Praga: a capital da Boêmia e banhada pelo Rio
Moldava. Cidade fértil, romanticamente plantada sobre sete colunas.
Especialidades da terra? Os famosos cristais da Boêmia, a cerveja que eu tinha
acabado de beber e os objetios de arte com destaque para as joias, a bela
granada que tem o mesmo vermelho profundo do rubi. Muitos instrumentos musicais
e metalúrgicos. O escritor Franz Kafka, um dos maiores do mundo e o patrono da
cidade é São Nepomuceno, o bravo mártir que por ordem do reio Wenceslau foi
atirado ao rio, isso por ter se recusado a revelar certa confissão que lhe
fizera a rainha.
Praga também é uma
cidade do sexo feminino mas sem o decote e sem os olhos pintados. Tem a
fisionomia tranquila de uma balzaquiana de cara lavada, mãos limpas e afeitas
às tarefas de lidar com a casa e com as flores.
Quando cheguei até a
pequena praça pensava em Franz Kafka, escritor da minha paixão e que dizia que
um livro deve ser assim como um machado para quebrar o nosso congelado mar
interior. Morreu jovem e brigado com o pai e com o mundo. Onde está você nesta
noite?! Eu perguntei e fiquei olhando para a mais cintilante das estrelas.
Nas pequenas lojas
da sala de espera, as especialidades da terra: joias de âmbar e granada, gorros
de pele, muita cerâmica popular, bonecos com os trajes típicos... No bar os
deliciosos sanduíches de caviar e salmão. O café fraco mas a vodca fortíssima,
pensei ao tomar o primeiro gole. E eis que de repente todo o sangue do mundo
subiu-me ao rosto, estou na Rússia!
Quando vi o quarto
sem banheiro fiquei deprimida, ah! Tanta vontade de me estender na cama e ali
ficar até o dia seguinte e mais algumas horas. O brasileiro pode passar sem
café e sem jogo do bicho, mas sem banho ele não fica não. E lembrei-me de uma
arrumadeira num hotel de Paris me perguntando, entre intrigada e receosa se por
acaso, par hasard os brasileiros não
tinham alguma doença de pele, ah! Essa mania dos banhos diários!... Já estava
na hora do jantar, mas antes da sopa – um banho quente com uma toalha bem
felpuda, ai! os pequenos prazeres.
Sempre achei o russo
assim parecido com brasileiro, com o nosso caboclo – e agora não me refiro ao
frágil Jeca Tatu de Monteiro Lobato, mas ao bravo sertanejo de Euclides da
Cunha, um home do sertão, rude, meio selvagem... e ao mesmo tempo, sentimental.
Gosta de cantar, dançar e beber com o mesmo ardor com que se empenha numa luta.
E alguns gostam também de exibir os tais dentes dourado.
[...] A Sibéria de
Dostoiévski, dolorosamente, terrivelmente retratada nas Recordações da Casa dos Mortos. Foi num soturno presídio atrás de
uma muralha e no extremo de uma pequena cidade siberiana (seria Omsk?) que
Dostoiévski esteve encarcerado quatro anos como prisioneiro militar. Lá ele se
inspirou para escrever as deslumbrantes recordações do personagem Aleksander
Petrovitch. Enfim, mas esse tempo já ia longe embora ainda fosse o mesmo esse
vento que soprava e igual a desolada paisagem dos pinheirais cor de ferrugem.
Muita gente
chegando. Não vi soldados fardados mas com o traje do país, o blusão com as calças
de brim azul e alpargatas pretas, enfim, no clássico estilo oriental. Os homens
com o cabelo cortado rente e as jovens de cabelo curto, caindo retos ou presos
em graciosas trancinhas, uma de cada lado do rosto. As idosas, essas com o
coque enrodilhado na nuca e as caras lavadas sem nenhum sinal de pintura.
Os maiores
entendidos de culinária já propagaram que há de fato apenas duas cozinhas no
mundo: a chinesa e a francesa. O resto é o shakesperiano silêncio.
[...] O padre dizia
a missa em latim, os devotos rezavam em chinês e Helena Silveira e eu em
português, perfeito o entendimento entre todos na única linguagem da fé.
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