Mann, Thomas. Morte em Veneza. Folha de S. Paulo; São
Paulo / SP; 2003; 94 páginas.
Breve relato do autor:
Thomas Mann é um escritor
alemão que recebeu o Nobel de Literatura de 1929. É considerado um dos maiores
romancistas do século XX .
Dados da obra:
Publicado em 1912, Morte em Veneza é uma escrita complexa e
profunda, na qual quase cada parágrafo pode ter várias leituras. O enredo é
praticamente inexistente: um homem de meia-idade viaja até Veneza, apaixona-se
platonicamente por um jovem rapaz polaco extremamente atraente. Mas o
importante na obra é a discussão da arte, do belo e do ideal da beleza.
Passagens:
... Mesmo sob o
prisma pessoal, a arte é uma vida elevada. Ela traz uma felicidade mais
profunda e um desgaste mais acelerado. Grava no rosto de seu servidor os traços
de aventuras imaginárias e espirituais, e com o tempo, mesmo no caso de uma
vida exterior de uma placidez monástica, provoca uma perversão, um refinamento,
um cansaço e uma excitação dos nervos, que mesmo uma vida cheia de paixões e
prazeres desvairados dificilmente poderia produzir.
As observações e as
vivências do solitário calado são ao mesmo tempo mais difusas e intensas do que
as dos seres sociáveis, seus pensamentos, mais graves, mais fantasiosos e
sempre marcados por um laivo de tristeza. Imagens e impressões que facilmente
seriam esquecidas com um olhar, um sorriso, uma troca de opiniões ocupam-no
mais do que o devido, aprofundam-se no silêncio, ganham significado,
transformam-se em vivência, aventura, sentimento. A solidão engedra o original,
o belo ousado e surpreendente, o poema. Mas engedra também o inverso, o
desmedido, o absurdo e o ilícito.
O deus do Amor, na
verdade, age como os matemáticos que mostram às crianças imagens concretas das
formas puras que estão além de seu alcance; assim também o deus para nos tornar
visível o imaterial, gosta de utilizar da forma e cor de um jovem corpo humano,
que ela adorna com todo o reflexo da beleza, para fazer dele um instrumento da
recordação, levando-nos assim, ao vê-lo a nos inflamarmos em dor e esperança.
... Pois a beleza,
meu caro Fedro, e apenas ela, é simultaneamente visível e enlevadora. Ela é –
nota bem – a única forma ideal que percebemos por meio dos sentidos e que
nossos sentidos podem suportar. Ou o que seria de nós se acaso o Divino, a
Razão, a Virtude e a Verdade se dispusessem a aparecer aos nossos sentidos? Não
iríamos sucumbir consumidos pela chama do amor, qual Sêmede outrora diante de
Zeus? Assim, a beleza é o caminho que conduz ao espírito o homem sensível –
apenas o caminho, um meio apenas, pequeno Fedro...
Não há nada maios
estranho e melindroso do que a relação entre pessoas que só se conhecem de
vista, que se encontram e se observam diariamente, ou mesmo a toda hora sem um
cumprimento, sem uma palavra, forçadas a manter uma aparente indiferença de
desconhecidos, por imposição dos costumes, ou por capricho pessoal. Há entre
elas inquietação e curiosidade exacerbada, a histeria de uma necessidade
insatisfeita, artificialmente reprimida, de travar conhecimento e comunicar-se,
e também, sobretudo, uma espécie de respeito carregado de tensão. Pois o ser
humano ama e respeita seu semelhante enquanto não tem condições de julgá-lo, e
o desejo é produto de um conhecimento imperfeito.
... Era mais belo do
que se poderia dizer, e Aschenbach sentiu dolorosamente, como já o sentira
tantas vezes, que, se a palavra mal pode enaltecer a beleza sensível, é
inteiramente incapaz de reproduzi-la.
... Alegria,
surpresa, deslumbramento deviam sem dúvida estampar-se abertamente em sua
fisionomia, quando seu olhar encontrou o do desaparecido – e nesse segundo
aconteceu que Tadzio sorriu: sorriu para ele, um sorriso apreensivo, confiado,
sedutor e franco, com lábios que só lentamente se abriam ao sorrir. Era o
sorriso de Narciso debruçado sobre o espelho d´água, aquele sorriso profundo,
enfeitiçado, prolongado, com que estende os braços ao reflexo da própria beleza
– um sorriso com um leve toque de contrariedade, pela vanidade de sua ambição
de beijar os graciosos lábios de sua sombra, um sorriso coquete, curioso,
ligeiramente atormentado, fascinado e fascinante.
Aquele que recebeu
esse sorriso fugiu dali, carregando-o consigo como uma dádiva fatídica. Estava
tão abalado que se viu forçado a fugir da luz do terraço e do jardim da frente,
buscando com passos precipitados a escuridão do porque dos fundos. Admoestações
singularmente indignadas e ternas escapavam-lhe: “Não deves sorrir assim! Estás
ouvindo? Não se deve sorrir assim para ninguém!” Atirou-se num banco, fora de
si inalando o perfume noturno das plantas. E reclinado, os braços pendentes,
subjugado e sacudido a eterna fórmula do desejo – impossível, neste caso,
absurda, abjeta, ridícula, mas ainda assim sagrada, mesmo neste caso, digna:
“Eu te amo!”
... “É preciso
manter silêncio!”. Mas ao mesmo tempo seu coração se enchia de satisfação pela
aventura em que o mundo exterior ameaçava a envolver-se. Pois a paixão, tal
como o crime, não se adapta à ordem estabelecida, ao bem-estar da marcha do
cotidiano, e qualquer desarranjo da estrutura burguesa, qualquer perturbação e
tribulação do mundo têm de lhe ser bem-vindos, pois ela pode alimentar a vaga
esperança de encontrar aí algum proveito.
... Seus nervos
absorviam avidamente os sons lamuriosos das melodias vulgares e lânguidas, pois
a paixão paralisa o senso crítico e se envolve a sério em encantos, que a
sobriedade aceitaria apenas humoristicamente, ou rejeitaria com irritação.
... para quem está
fora de si nada parece mais detestável do que retornar a si mesmo.