Abreu, Caio
Fernando. Morangos Mofados. Editora
Brasiliense; São Paulo / SP; 1982; 153 páginas.
Breve relato do autor:
Caio Fernando Abreu
foi um jornalista, dramaturgo e escritor brasileiro. Sua obra, escrita num
estilo econômico e bem pessoal, fala de sexo, de medo, de morte e,
principalmente, de angustiante solidão. Apresenta uma visão dramática do mundo
moderno e é considerado um "fotógrafo da fragmentação contemporânea".
Dados da obra:
Em Morangos Mofados, o autor apresenta contos
que mostram a fé fundamental que iluminou o projeto libertário da
contracultura. É o quarto livro de contos do escritor, sendo considerado sua
obra-prima pela crítica literária. Foi escrito em 1982 e aclamado como o melhor
livro daquele ano pela revista Isto É.
Passagens:
Diálogo
A – Você é meu
companheiro.
B – Hein?
A – Você é meu
companheiro, eu disse.
B – O quê?
A – Eu disse que
você é meu companheiro.
B – O que é que você
quer dizer com isso?
A – Eu quero dizer
que você é meu companheiro. Só isso.
B – Tem alguma coisa
atrás, eu sinto.
... não vou tomar
nenhuma medida drástica, a não ser continuar, tem coisa mais destrutiva que
insistir sem fé nenhuma?
... a verdade é que
chega-se sempre longe demais quando não se quer Ir Direto Aos Fatos, mas o
problema de Ir Direto Aos Fatos é que não há cir-cun-ló-qui-os então, e a
maioria das vezes a graça está justamente nesses Vazios Volteios Virtuosos,
digamos assim? Que não haja beleza nos fatos desde que se vá direto a eles? Ou
que não haja mistério, que seja insuportavelmente dispensável gostar dos
cir-cun-ló-qui-os. Ultrapasse-os. Acontece que. Nada acontece...
(Os companheiros)
... O quê? –
perguntei. Você é gostoso, ele disse.
Não parecia bicha
nem nada: só um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o
meu, que por acaso era de homem também. Eu estendi a mão aberta, passei no
rosto dele falei, qualquer coisa. O quê? - perguntou. Você é gostoso, eu disse.
Eu era só um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o dele,
que por acaso era de homem também.
(Terça-feira gorda)
... Você vai pegar
um resfriado, ele falou com a mão no meu ombro. Acho que foi aí que percebi que
não usávamos máscara. Lembrei que tinha lido em algum lugar que a dor é a única
emoção que não usa máscara. Não tínhamos dor, mas aquela coisa daquela hora que
a gente estava sentindo, e eu nem sei se era alegria, também não usava máscara.
Então pensei devagar que era proibido ou perigoso não usar máscara.
(Terça-feira gorda)
Preciso de algo que
me tire desta janela e logo após, ainda, do depois. Querer um sentido me leva a
querer um depois, os dois vêm juntos, se é que você me entende.
(Luz e sombra)
... e logo lembrei
daquele inábil escoteiro que em tempos imemoriais, inconfessáveis sob pena de
revelar um coração já marcado pelas intempéries da existência, deixei que ensaiasse
em minha exuberante geografia seus hesitantes primeiros passos, e após trinta e
seis meses de proveitosa aprendizagem permiti que partisse, disseminando por
outras paragens toda a sabedoria que, com trágica paciência e dilacerada
alegria, concedi que extirpasse de mim, pois sempre soube ser eu, loura febril,
nada mais que a primeira, jamais a derradeira, jamais a única, jamais a
para-sempre, a escolhida de seus esplêndidos ventre juvenil.
(Fotografias)
Não ofereço perigo
algum: sou quieta como folha de outono esquecida entre as páginas de um livro,
sou definida e clara como o jarro com a bacia de ágata no canto do quarto se
tomada com cuidado, verto água limpa sobre as mãos para que se possa refrescar
o rosto mas, se tocada por dedos bruscos, num segundo me estilhaço em cacos, me
esfarelo em poeira dourada.
(Fotografias)
– Cecília Meireles, era Cecília Meireles, era
um poema assim que eu dizia: Levai-me por
onde quiserdes / aprendi com as primaveras a deixar-me cortar / e a voltar
sempre inteira.
(Caixinha de música)
Num deserto de almas
também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra – talvez por
isso, quem sabe?
Mas nenhum se
perguntou.
(Aqueles dois)