terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Como um Romance

Pennac, Daniel. Como um Romance. Editora Rocco. Rio de Janeiro / RJ; 1993. 168 páginas.

Dados da obra:

Ensaio em que Pennac questiona, por meio da recriação ficcional do ambiente de uma sala de aula, a razão de os jovens não gostarem de ler. Baseado em suas próprias experiências como professor, ele ensina como recuperar nos alunos o gosto pela leitura. É uma declaração de amor ao ato de ler.

Breve relato do autor:

Daniel Pennac nasceu em Casablanca, Marrocos e é filho de um oficial francês que servia nas colônias do país. É professor de língua francesa em uma escola em Paris e um apaixonado pela pedagogia. Hoje considerado um dos mais importantes e populares autores da literatura francesa

Passagens:

“Resumindo, ensinamos tudo do livro, a ele, naquele tempo em que ele não sabia ler. Nós o abrimos à infinita diversidade das coisas imaginárias, o iniciamos nas alegrias da viagem vertical, o dotamos de ubiquidade, libertado de Cronos, mergulhado na solidão fabulosamente povoada de leitor... As histórias que líamos para ele formigavam de irmãos, de4 irmãs, de pais, de duplos ideais, esquadrilhas de anjos da guarda, legiões de amigos tutelares encarregados de suas tristezas, mas que, lutando contra seus próprios ogres, encontravam, eles também refúgio nas batidas de seu coração. Ele tinha se tornado o anjo recíproco deles: um leitor. Sem ele, o mundo deles não existiria. Sem eles, ele continuaria preso na espessura do seu. Assim, ele descobriu a virtude paradoxal da leitura que é nos abstrair do mundo para lhe emprestar um sentido.”

“Ele é, desde o começo, o bom leitor que continuará a ser se os adultos que o circundam alimentarem seu entusiasmo em lugar de pôr à prova sua competência, estimularem seu desejo de aprender, antes de lhe impor o dever de recitar, acompanharem seus esforços, sem se contentar de esperar na virada, consentirem em perder noites, em lugar de procurar ganhar tempo, fizerem vibrar o presente, sem brandir a ameaça do futuro, se recusarem a transformar em obrigação aquilo que era prazer, entretendo esse prazer até que ele se faça um dever, fundindo esse dever na gratuidade de toda aprendizagem cultural, e fazendo com que encontrem eles mesmos o prazer nessa gratuidade.”

“Na noite seguinte, mesmos encontros. E mesma leitura, provavelmente. Sim, há chances de quele nos reclame o mesmo conto, coisa de provar a si mesmo que não estava sonhando na véspera, e que nos faça as mesmas perguntas, nos escutar lhe dando as mesmas respostas. A repetição é confortadora. Ela é prova de intimidade. Ela é respiração mesma. Ele tem necessidade de reencontrar esse sopro:
– Mais!
...
Reler não é se repetir, é dar uma prova sempre nova de um amor infatigável.
Então relemos.”

“Tem aqueles que nunca leram e têm vergonha, os que não têm mais tempo de ler e que cultivam o remorso, há os que não leem romances, só livros úteis, ensaios, obras técnicas, boografias, livros de história, há os que leem tudo e não importa o quê, os que ‘devoram’ e têm olhos que brilham, há os que só leem os clássicos, meu senhor, ‘porque não há melhor crítica do que a peneira do tempo’, os que passam a sua maturidade a ‘reler e aqueles que leram o último livro tal e o último tal outro, porque é preciso, o senhor sabe, estar atualizado...
Mas todos, todos, em nome da necessidade de ler.”

“Sem sombra de dúvida, as horas passadas no escritório de meu pai estimulavam não somente nossa imaginação, como também nossa curiosidade. Uma vez provado o encanto sedutor da grande literatura e o reconforto que ela nos oferece, gostaríamos de conhecer sempre mais – outras histórias ridículas e parábolas cheias de sabedoria, contos de múltiplas significações e estranhas aventuras. E é assim que se começa a ler por si mesmo...
Assim falou Klaus Mann, filho de Thomas, o Mágico, e de Mielen, a de voz emocionada e bem timbrada.”

“Uma leitura bem levada nos salva de tudo, inclusive de nós mesmos.
(...)
Mas é, mais cotidianamente, o refúgio do livro contra o crepitar da chuva, o silencioso ofuscamento das páginas contra a cadência do metrô, o romance escondido na gaveta da escrivaninha, a breve leitura do professor enquanto os alunos trabalham, e o aluno no fundo da sala lendo, disfarçado, esperando a hora de entregar a folha em branco...”

“Caras bibliotecárias, guardiãs do templo, é um felicidade que todos os títulos do mundo tenham encontrado seus estojos na perfeita organização de vossas memórias (como iria encontrá-los sem vós, eu, cuja memória parece mais um terreno baldio?), é prodigioso que estejais em dia com todas as temáticas ordenadas nas estantes que vos circundam... mas como seria bom também vos escutar contar vossos romances preferidos aos visitantes perdidos na floresta de leituras possíveis... como seria lindo se lhes rendesseis a homenagem de vossas melhores lembranças de leitura! Contadoras, sejam mágicas, e os livros saltarão de suas prateleiras nas mãos do leitor.
E é tão simples contar um romance. Bastam três palavras, às vezes.”

“O dever de educar, consiste, no fundo, no ensinar as crianças a ler, iniciando-as na Literatura, fornecendo-lhes meios de julgar livremente se elas sentem ou não a ‘necessidade de livros’. Porque, se podemos admitir que um indivíduo rejeite a leitura, é intolerável que ele seja rejeitado por ela.
É uma tristeza imensa, uma solidão dentro da solidão, ser excluído dos livros – inclusive daqueles que não nos interessam.”

“No entanto, entre nossas razões para abandonar uma leitura existe uma que merece que nos detenhamos um pouco: o sentimento vago de perda. Abri, li e cedo me senti submerso por qualquer coisa mais forte do que eu. Reuni meus neurônios, discuti com o texto, mas não adianta, fico om o belo sentimento de que o que está escrito merece ser lido, mas não pego nada – ou tão pouco que é mesmo que nada –, sinto ali um ‘estranhamento’ que não me prende.
Deixo cair.
Ou melhor, deixo de lado. Guardo na minha estante com o vago projeto de voltar um dia. O Petersburgo de Andrei Bielyi, Jouce e3 seu Ulisses, A sombra do vulcão de Malcom Lowry me esperaram alguns anos. Há outros que me esperam ainda, alguns que não vou recuperar nunca, provavelmente. Isso não é um drama, é assim mesmo.”

“O homem que lê de viva voz se expõe totalmente. Se não sabe o que lê, ele é ignorante de suas palavras, é uma miséria, e isso se percebe. Se se recusa a habitar sua leitura, as palavras tornam-se letras mortas, e isso se sente. Se satura o texto com a sua presença, o autor se retrai, é um número de circo, e isso se vê. O homem que lê de viva voz se expõe totalmente aos olhos que o escutam.
Se ele lê verdadeiramente, põe nisso todo seu saber, dominando seu prazer, se sua leitura é uma ato de simpatia pelo auditório como pelo texto e seu autor, se consegue fazer entender a necessidade de escrever, acordando nossas mais obscuras necessidades de compreender, então os livros s abrem para ele e a multidão daqueles que se acreditavam excluídos da leitura vai se precipitar atrás dele.”

Direitos imprescritíveis do leitor

1. O direito de não ler.
2. O direito de pular páginas.
3. O direito de não terminar um livro.
4. O direito de reler.
5. O direito de ler qualquer coisa.
6. O direito ao bovarismo (doença textualmente transmissível)
7. O direito de ler em qualquer lugar.
8. O direito de ler uma frase aqui e outra ali.
9. O direito de ler em voz alta.
10. O direito de calar.

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