Antunes, António Lobo. Ontem não te vi em Babilónia. Alfaguara; Rio de Janeiro / RJ; 2008; 440 páginas.
Dados da obra:
É meia-noite e até a madrugada os personagens do livro estão insones na cama, remoendo lembranças e memórias dolorosas de perda, traição e morte. As vozes se entrelaçam umas às outras, numa trama de múltiplas vozes. Há três personagens principais: Ana Emília, que não consegue esquecer o suicídio da filha de 15 anos; Alice, ex-enfermeira, casada com um homem calado; e Osvaldo, seu marido, um ex-policial que torturava e matava “inimigos da Igreja e do Estado”.
Breve relato do autor:
Escritor e psiquiatra português, proveniente de uma família da alta burguesia. Entre 1971 e 1973 viveu em Angola, onde participou, como tenente médico do Exército, na Guerra do Ultramar. Posteriormente exerceu a profissão em um hospital de Lisboa até 1985, quando passou a se dedicar à literatura, embora tenha lançado seus primeiros romances em 1979: Memória de elefante e Os cus de Judas.
Passagens:
“Quando estou muitas horas acordada a sentir o tempo que não sei para onde vai no relógio eléctrico, sei que passa por mim num zumbidinho leve, começo a distinguir coisas no escuro, primeiro os móveis que deixaram de ser móveis e perderam o nome e depois o tecto, as paredes, o quadrado mais claro da janela e o rectângulo mais claro da porta esses sim ainda tecto e paredes e janela e porta e eu todavia perdendo-os também e a esquecer o que são, parece que a alma me sai num fuminho e tenho medo que não regresse mais, que ficando sem alma fique sem a minha vida inteira e continue a respirar como respiram as cortinas e as árvores que por mais que nos falem não as podemos ouvir, não nos preocupamos no caso por exemplo de se assustarem, sofrerem, não fazem parte de nós, andam por aí e acabou-se, quando estou muitas horas acordada a minha cara principia a tornar-se da mesma matéria que as tais coisas do escuro e deixa de ser cara, os braços deixam de ser braços consoantes os móveis deixaram de ser móveis e perderam o nome...”
“... se de novo uma praia com os meus pais entrava água dentro sem me despir nem do fio do pescoço e afogava-me, palavra de honra, afogava-me, daqui a pouco cinquenta anjos e as escadas infinitas, ter de parar a meio à espera do regresso dos pulmões a fingir que me falta não sei quê na carreira, quem encostasse a orelha ao meu peito dava por uma biela exausta a falhar, as peças lá se encaixavam que sorte, cambaleavam um bocadinho e recomeçavam o giro, passado tanto tempo o coração obediente, fiel, não conto com as hormonas mas conto contigo, obrigada, graças a Deus a Lurdes herdou o coração do avô, um cavalo que aos oitenta e três anos punha pinças de roupa para evitar o óleo nas calças e dava o seu passeio de bicicleta ao domingo, aos oitenta e nove caminhava sem bengala, aos noventa e dois almoçava por cinco, aos noventa e quatro coitado começou a ficar duro de ouvido e a enganar-se na família, informava-o aos gritos
– Não sou a minha mãe sou a Lurdes...”
“Não me preocupa o meu marido ou o que lhe possa acontecer com os estranhos, não me preocupa que a manhã chegue ou não chegue embora haja menos móveis de dia que de noite e a casa em que não confio finja que me aceita não tentando expulsar-me, aprendi à minha custa a não acreditar nas casas sempre a enxotarem-nos para a rua ou cercarem-nos de tralha
– Não saias daqui agora...”
“... ia garantir que uma locomotiva e falso, um estore que descia e um rosto atrás do estore para sempre perdido, talvez aquele que desejei a vida inteira sem jamais nos cruzarmos, que desde o início me pertence e a quem pertenço desconhecendo que lhe pertencia, pelo qual morrerei soluçando de amor sem nunca nos havermos trocado, se contasse isto à dona Laura a dona Laura comovida a esquecer as consoantes
– Que lindo...”
“– Aguenta um minuto rapaz
A prima da minha mãe
– Deita-te
E não lhe obedecia a ela, obedecia a uma voz que nada me indicava que lhe pertencesse, demasiado remota para além do mar e das ondas e dos albatrozes calados, não mais que a senhora na cadeira de baloiço
– Anda cá
Não de preto, uma senhora vulgar, não imaginava que a morte uma senhora real, sem mistério, de xaile nas costas a esconder-se do frio e que não me assustava nem levava consigo, limitava-se a estar ali familiar, tranquila, não necessitava de dizer-nos
– Sou eu
Para que a gente a aceitasse, quer dizer aceitávamo-la perguntando
– Afinal a morte é só isto
E de facto era isto, só isto, o xaile gasto, a blusa fora de moda...”
"... o que eu gostava, o que eu queria, o que teria desejado se fosse capaz de desejar e não sou, era que a palma me continuasse na cara durante tanto tempo que eu cega, era que a minha palma continuasse na vossa cara durante tanto tempo que cegos
– Seremos loiros nós
e não fazia mal, não tem importância, não se preocupem com o livro
(não estou a girar sozinha é com a minha mãe que eu giro)
porque aquilo que escrevo pode ler-se no escuro."
"... o que eu gostava, o que eu queria, o que teria desejado se fosse capaz de desejar e não sou, era que a palma me continuasse na cara durante tanto tempo que eu cega, era que a minha palma continuasse na vossa cara durante tanto tempo que cegos
– Seremos loiros nós
e não fazia mal, não tem importância, não se preocupem com o livro
(não estou a girar sozinha é com a minha mãe que eu giro)
porque aquilo que escrevo pode ler-se no escuro."
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.