Breve relato do autor:
Clarice
Lispector foi uma escritora e jornalista brasileira. Nascida na Ucrânia,
naturalizou-se brasileira.
Dados da obra:
Publicado em
1964, o livro trata de uma mulher identificada apenas por G. H. Depois de
demitir a empregada, ela tenta limpar o quarto, onde se depara com uma barata
dentro do guarda-roupa. Desse encontro, ela tece reflexões e, após esmagar a
barata na porta do armário, relata a perda da individualidade.
Passagens:
Os traços –
descobri sem prazer – eram traços de rainha. E também a postura: o corpo
erecto, delgado, duro, liso, quase sem carne, ausência de seios e de ancas. E
sua roupa? Não era de surpreender que eu a tivesse usado como se ela não
tivesse presença; sob o pequeno avental, vestia-se sempre de marrom escuro ou
de preto, o que a tornava toda escura e invisível – arrepiei-me ao descobrir
que até agora eu não havia percebido que aquela mulher era invisível. Janair
tinha quase que apenas a forma exterior, os traços que ficavam dentro de sua
forma eram tão apurados que mal existiam: ela era achatada como um baixo-relevo
preso a uma tábua.
Não fora eu
quem repelira o quarto, como havia por um instante sentido à porta. O quarto,
com sua barata secreta, é que me repelira. De início eu fora rejeitada pela
visão de uma nudez tão forte como o de uma miragem, pois não fora a miragem de
um oásis que eu tivera, mas a miragem de um deserto. Depois eu fora imobilizada
pela mensagem dura na parede: as figuras de mão espalmada haviam sido um dos
sucessivos vigias à entrada do sarcófago. E agora eu entendia que a barata e
Janair eram os verdadeiros habitantes do quarto.
A barata é
um ser feio e brilhante. A barata é pelo avesso. Não, não, ela mesma não tem
lado direito nem avesso: ela é aquilo. O que nela é exposto fiz o meu avesso
ignorado. Ela me olhava. E não era um rosto. Era uma máscara. Uma máscara de
escafandrista. Aquela gema preciosa ferruginosa. Os dois olhos eram vivos como
dois ovários. Ela me olhava com a fertilidade cega de seu olhar. Ela
fertilizava a minha fertilidade morta. Seriam salgados os seus olhos? Se eu os
tocasse – já que cada vez mais imunda eu gradualmente ficava – se eu os tocasse
com boca, eu os sentiria salgados?
Pela
primeira vez eu sentia com sofreguidão infernal a vontade de ter tido filhos
que eu nunca tivera: eu queria que se tivesse reproduzido, não em três ou
quatro filhos, mas em vinte mil a minha orgânica infernalidade cheia de prazer.
Minha sobrevivência futura em filhos é que seria a minha verdadeira atualidade,
que é, não apenas eu, mas minha prazerosa espécie a nunca se interromper. Não
ter tido filhos me deixava espasmódica como diante de um vício negado.
Enfim, enfim
quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu era. Por não ser, eu
era. Até o fim daquilo que eu não era, eu era. O que não sou eu, eu sou. Tudo
estará em mim, se eu não for; pois “eu” é apenas um dos espasmos instantâneos
do mundo.