Cristovão Tezza é romancista e professor universitário. Nascido em Lages, Santa Catarina, ele mudou-se para Curitiba (PR) aos oito anos, sendo esta cidade palco de boa parte de sua literatura.
Dados da obra:
Passagens:
Sombras
escurecem o mundo sem ocupá-lo, são entidades inexpugnáveis, duplos deformados
e perenes, vencidos apenas pela escuridão, de que fugimos.
Era
preciso mesmo repetir o pai, o seu maldito modelo de referência: Não procure
uma mulher semelhante a você, que trabalhe na mesma área. Num momento ela vai
querer ser melhor que você. Os fundamentalistas têm razão para temerem
profundamente as mulheres. O mundo se transformou numa máquina feminina porque
as mulheres são melhores que os homens em tudo – metódicas, sistemáticas,
aplicadas, obedientes, básicas, eficientes, sensíveis, atentas, objetivas,
educadas, receptivas e atraentes. Nenhum homem consegue ser tudo isso ao mesmo
tempo. O pai poderia ter acrescentado: E você nunca foi alguém forte. Você vai ser
esmagado. Quando se der conta, não terá mais ar para respirar.
...
Talvez dizer agora a Beatriz, nitidamente, para que ela não se engane sobre o
que vê: não, eu não quero dar sentido ao mundo, eu não quero juntar pedaço de
coisa nenhuma, o que eu quero é tirar o sentido do mundo, é justo o contrário,
eu quero desmontar esse senso de ordem até a última rosca, mas também isso
restava incoerente, o mero impulso irracional disfarçado de atitude ou de olhar
crítico; um arrogante é, basicamente, um conservador, política e
psicologicamente; cada coisa no seu lugar imutável, e o meu é lá em cima...
...Beatriz
nunca teve propriamente apelido, apenas breves resumos, Bea, Bia – e gostava,
criança pequena, da expressão por um triz, que sempre provocava risadas: Por um
triz, Beatriz! Pequenos cromos de infância que precisavam ser protegidos a todo
custo – a representação da infância feliz, por um triz, Beatriz!
Mas o
seu pai era racista? – perguntou o analista, e ele custou a responder, não
certamente não; ele apenas sentiria horror de apresentar essa questão à mesa
como uma variável a ser pensada; a raça como refúgio, qualquer uma, é a
desistência da condição humana que o Ocidente criou a duríssimas penas, mas
isso sou eu que digo – meu pai não teria esse vocabulário – tinha pose e uma
retórica de chavões, o clássico mulato pernóstico em que rutilavam os olhos
verdes de sararás holandeses; quanto a mim, e Donetti continuava sorrindo, eu sou
apenas escuro.
... a
infância é um bom tempo não em si, poderia acrescentar, mas só quando vista de
longe. Em si, é uma sucessão fragmentária de sentimentos fortíssimos sem
ligação uns com os outros, e alguns deles apavorantes até o fim dos dias, cromos
que se colam na memória para todo o sempre, com seu poder escravizante...
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