sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

A casa dos espíritos



Allende, Isabel. A Casa dos Espíritos. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro/RJ; 2010; 448 páginas.
Breve relato da autora:
 
Isabel Allende é uma jornalista e escritora chilena. Apesar de ter nascido em Lima, no Peru, sua família voltou logo para ao Chile, sua terra natal. Atualmente vive nos Estados Unidos.

Dados da obra:
 
Relata a vida de Esteban Trueba, família e descendentes legítimos e ilegítimos, por todo o século XX, no Chile, acompanhando sua evolução social e política. A escritora se baseou na história de sua família, misturando realidade com ficção. Três personagens femininas se destacam: Clara, a “clarividente”, sua filha Blanca e a neta Alba.

Passagens:

Esteban Trueba recostou-se no banco forrado de veludo vermelho e agradeceu a iniciativa dos ingleses de construir carruagens de primeira classe, onde se podia viajar como um cavalheiro sem ter que suportar as galinhas, as canastras, os pacotes de papelão amarrados com barbante e o choramingar de crianças. Felicitou-se pela decisão de comprar uma passagem mais cara, pela primeira vez na vida, e concluiu que era nos detalhes que estava a diferença entre um cavalheiro e um camponês. Por isso, embora em má situação, desse dia em diante iria gastar dinheiro nas pequenas comodidades que o faziam sentir-se rico.

... Pancha García não se defendeu, não se queixou, não fechou os olhos. Ficou de costas, fixando o céu com uma expressão apavorada, até sentir o homem desabar com um gemido a seu lado. Então começou a chorar suavemente. Antes dela, sua mãe e, antes de sua mãe, sua avó tinham cumprido o mesmo destino de cadela...

Férula sobressaltou-se, perguntando-se se seriam certos os boatos sobre a habilidade de Clara para ler o pensamento alheio. Sua primeira reação foi de orgulho e teria recusado a oferta apenas pela beleza do gesto, mas Clara não lhe deu tempo. Inclinou-se e beijou-a na face com tanta candura, que Férula perdeu o controle e começou a chorar. Fazia muito tempo que não derramava uma lágrima e comprovou, assombrada, quanta falta lhe fazia um gesto de ternura. Não se lembrava da última vez que alguém a havia tocado espontaneamente. Chorou longo tempo, libertando-se de muitas tristezas e solidões passadas, da mão de Clara, que a ajudava a assoar-se e entre dois soluços lhe dava mais pedaços de bolo e goles de chá. Ficaram chorando e falando até as oito horas da noite e nessa tarde no Hotel Francês selaram um pacto de amizade que durou muitos anos.

Clara recompôs-se do duplo parto com rapidez. Entregou a criação dos meninos a sua cunhada e à Nana, que, depois da morte dos antigos patrões, se empregou na casa dos Trueba, para continuar servindo o mesmo sangue, com dizia. Nascera para embalar filhos alheios, usar roupa que os outros dispensavam, comer suas sobras, viver de sentimentos e tristezas emprestados, envelhecer sob teto alheio, morrer um dia em seu cubículo do último pátio, em cama que não era sua, e ser enterrada na vala comum do Cemitério Central.

Um dia Pedro García, o velho, contou a Blanca e a Pedro Terceiro a história das galinhas que se puseram de acordo para enfrentar um raposo que todas as noites entrava no galinheiro para roubar os ovos e devorar os pintinhos. As galinhas decidiram que já estavam fartas de aguentar a prepotência do raposo, esperaram-no organizadas e, quando ele entrou no galinheiro, fecharam-lhe em cima a bicadas até deixá-lo mais morto do que vivo.
– E, então, o raposo fugiu com o rabo entre as pernas, perseguido pelas galinhas – terminou o velho.
Blanca riu com a história e comentou que isso era impossível, porque as galinhas nascem estúpidas e débeis, e os raposos nascem astutos e fortes, mas Pedro Terceiro não riu. Ficou toda a tarde pensativo, ruminando a história do raposo e das galinhas, e talvez tenha sido esse o instante em que o menino começou a fazer-se homem.

Durante a viagem de trem, Clara atualizou sua filha sobre as novidades da família e a saúde de seu pai, esperando que Blanca lhe fizesse a única pergunta que sabia que ela desejava fazer, mas Blanca não mencionou Pedro Terceiro, e Clara não se atrevia a fazê-lo. Acreditava que, ao nomear os problemas, eles se materializavam e já não era possível ignorá-los; por outro lado, se ficam no limbo das palavras não ditas, podem desaparecer sozinhos, com o decorrer do tempo...

– Pedro Terceiro García não fez nada que você mesmo não tenha feito – disse Clara, quando pôde interrompê-lo. – Você também se deitou com mulheres solteiras que não são da sua classe. A diferença é que ele o fez por amor. E Blanca também.

Era a única pessoa de toda a casa que tinha uma chave para entrar no túnel de livros de seu tio e autorização para pegá-los e lê-los. Blanca acreditava que deveriam dosar a leitura, porque havia coisas que não eram adequadas à sua idade, mas seu tio Jaime afirmara que só se lê o que interessa, e se interessa, é porque já se tem maturidade para fazê-lo...

– Tal como no momento de vir ao mundo, ao morrer temos medo do desconhecido. Mas o medo é algo interior, que nada tem a ver com a realidade. Morrer é como nascer: apenas uma mudança – tinha-lhe dito Clara.

Blanca preferia aqueles furtivos encontros com seu amante em hospedarias à rotina de uma vida em comum, ao cansaço de um casamento e ao pesadelo de envelhecer juntos, compartilhando as penúrias do final do mês, o mau hálito da boca ao acordar, o tédio dos domingos e os achaques da idade. Era uma romântica incurável.

O país encheu-se de fardas, máquinas bélicas, bandeiras, hinos e desfiles, porque os militares conheciam a necessidade de o povo ter seus próprios símbolos e ritos. O senador Trueba que, por princípio, detestava essas coisas, compreendeu o que os amigos do clube tinham querido dizer quando lhe haviam assegurado que o marxismo não tinha a menor oportunidade na América Latina, porque não contemplava o lado mágico das coisas. “Pão, circo e algo para venerar é tudo de que necessitam”, concluiu o senador, lamentando no seu íntimo que faltasse o pão.

As pessoas caminhavam em silêncio. Subitamente, alguém gritou, rouco, o nome do Poeta e uma só voz, saída de todas as gargantas, respondeu: “Presente! Agora e sempre!”. Foi como se tivessem aberto uma válvula, e toda a dor, o medo e a raiva daqueles dias saíssem dos peitos e rodassem pela rua, e subissem num terrível clamor até as nuvens negras do céu. Outro gritou: “Companheiro presidente!”. Pouco a pouco, o funeral do Poeta transformou-se no ato simbólico de enterrar a liberdade.

Ficamos conversando o resto da noite. Era uma daquelas mulheres estoicas e práticas de nosso país, que têm um filho de cada homem que passa por suas vidas e que, além disso, recolhem em seu lar as crianças que outros abandonam, os parentes mais pobres e qualquer pessoa que necessite de uma mãe, uma irmã, uma tia, mulheres que são o pilar central de muitas vidas alheias, que criam filhos para vê-los ir embora depois e que também veem seus homens partirem, sem se permitir um queixume, porque têm outras urgências maiores com que se ocupar.

... Agora, porém, duvido de meu ódio. Em poucas semanas, desde que estou nesta casa, parece ter-se diluído, ter perdido seus nítidos contornos. Desconfio de que tudo que aconteceu não seja fortuito, mas que corresponda a um destino traçado antes de meu nascimento e que Esteban García seja parte desse desenho. É um traço rude e torcido, mas nenhuma pincelada é inútil. No dia em que meu avô derrubou sua avó, Pancha García, nos matagais do rio, acrescentou outro degrau a uma cadeia de fatos que deveriam ser cumpridos. Depois, o neto da mulher violada repete o gesto com a neta do violador, e, dentro de 40 anos, talvez meu neto derrube a neta dele entre as matas do rio, e, assim, pelos séculos vindouros, numa história infindável de dor, sangue e amor...

... Escrevo, ela escreveu, que a memória é frágil, e o transcurso de uma vida, muito breve, e tudo acontece tão depressa, que não conseguimos ver a relação entre os acontecimentos, não podemos medir a consequência dos atos, acreditamos na ficção do tempo, no presente, no passado e no futuro, mas também pode ser que tudo aconteça simultaneamente, como diziam as três irmãs Mora, que eram capazes de ver no espaço os espíritos de todas as épocas... Por isso, minha avó Clara escrevia em seus cadernos para ver as coisas em sua dimensão real e driblar a sua péssima memória...

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