Breve
relato do autor:
Luiz Ruffato é um escritor brasileiro
que ganhou os prêmios APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e Machado
de Assis da Fundação Biblioteca Nacional com o romance eles eram muitos cavalos.
Dados
da obra:
Primeiro romance do autor foi
publicado em 2001. Toda a ação do livro se passa num só dia, 9 de maio de 2000.
Por meio de fragmentos, flashes, poemas, receitas, bulas, listas, o autor faz
um recorte aéreo da cidade de São Paulo. Cenas de amor, ódio, violência,
paixão, fé, esperança, tristeza, enfim, todo o caos da cidade está presente no
livro.
Passagens:
“Eles eram muitos cavalos,
mas ninguém mais sabe os seus nomes,
sua pelagem, sua origem...” – Cecília
Meireles
A vizinhança espreguiça-se
uma discussão, logo
abortada
uma porta que se fecha
um
rádio ligado
cachorros
que latem
a
porta de aço descerrada da padaria
passos
rápidos na calçada
um
bebê que esgoela
uma
sirene, longe “Polícia?”
o
ônibus encosta, os passageiros apressam-se, arranca
e
eu decidi que não quero mais essa vida pra mim não não quero.
...Toma o ônibus até a estação Saúde
do metrô, baldeia na Sé para a estação República. Da escada-rolante emerge, o
Edifício Itália funda-se nos seus ombros, a fumaça de carros e caminhões tachos
de acarajés coxinhas quibes pastéis, vozes atropelam-se, amalgamam-se,
aniquilam-se, em bancas revistas, jornais, livros usados, pulseiras brincos
colares gargantilhas anéis, lã em gorros ponches blusas mantas xales, pontos de
ônibus lotados, trombadinhas, engraxates, carrinhos de pipoca, doces caseiros,
vagabundos, espalhados caídos arrastando-se bêbados mendigos meninos drogados
aleijados.
No minúsculo cômodo cheirando a doença
expõem-se: sobre a mesinha de cabeceira um abajur de cúpula azul, o retrato de
um bebê holocáustico, um copo americano vazio, cartelas de remédio; os brancos
braços magros de um cristo de gesso contrastam com a verdescura parede úmida,
um frágil guarda-roupa de compensado; um tapete de barbante espichado no chão
de tacos banguela. E, sob rústicos lençóis de saco-de-estopa, abandonada,
esqueleto estufando a pele cinzenta, rija, ela.
Aos poucos a amiga, tão vaidosa, abduz
dos doze anos a alegre menina que sonhava casar e ser médica “para ajudar os semelhantes.”
A adolescente rente ao corredor
madorna desordenados fascículos de
cursinho pré-vestibular derramam-se pelos braços vez em vez escorrega para os
lados da velha que sobressaltada se desculpa
(ajeita-se ainda mais para o canto)
Tenta impossíveis olhos abertos acorda
cedo meio expediente no balcão de uma agência de viagens o cursinho fim de
tarde volta hora e meia de ônibus a mãe pergunta minha filha tanto sacrifício
vale a pena?
E migalhas de seus sonhos
esparramam-se sobre os ombros da velha.
E desapareceu por detrás do vidro da
sala de cirurgia.
O silêncio encalavou-se no
anestesista.
Os olhos da instrumentadora
hipnotizados pelas horas na parede.
O residente monitora os impulsos do
coração do paciente agora respiração convulsa.
... As poesias foram escritas não pra
ficar sepultadas nas páginas dos livros, mas pra se tornarem parte da nossa
memória coletiva... Eu avivo todo o meu conhecimento de moleque míope que
ficava em casa lendo, enquanto a molecada ia pro campinho jogar futebol...
Instalei-me num quarto, você se
lembra?
Sexta-feira à noite, Hotel Amazonas,
Ave
nida Vieira de Carvalho, lá embaixo,
barulho
um restaurante italiano,
outro, comida rápida árabe,
carros,
ônibus,
lá embaixo,
nas ruas transversais,
eu sabia das prostitutas,
dos meninos fumando crack,
dos
assaltantezinhos pé-de-chinelo,
eu sabia da noite
e deitei, mas não era alívio que
sentia,
nem remorso, era não sei o quê,
saudade,
talvez,
ia sentir falta das crianças, pijamas
amontoados correndo, suados, na sala minúscula do apartamento ridiculamente
pequeno em que morávamos e que você vivia implicando, dizendo que tínhamos de
sair dali,
tínhamos
de sair dali,
sair
dali,...
Não gosta de recordações. Anda pelas
ruas como em um labirinto. Em todas surpreende-se, é surpreendido. Que adiantam
as lembranças? Tempos... Espaços... Nada... A memória não reconstrói o
passado... reaviva dores... apenas... O que fizemos... O que não...
Quando conheceu o futuro marido, num
cult9o dominical na Casa da Benção, não escondia qualquer ilusão, uma moça
velha de felicidades lasseada. E assim foi, a festa de casamento, a desmudança
– estranhou: o mesmo espaço de sempre não era o mesmo espaço de sempre, mas
pouco ocupou disso suas horas, o engravidamento, para honra e glória do Senhor,
atropelou-a e o vômito e as tonteiras e as pernas inchadas e a rabugice e a
tristeza e a alegria varreram suas preocupações...
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