Carvalho, José Cândido. O coronel e o lobisomem. José Olympio Editora. Rio de Janeiro/RJ; 2007;
399 páginas.
Breve
relato do autor:
José
Cândido Carvalho foi um advogado, jornalista e escritor brasileiro, nascido em
Campos de Goytacazes, no Rio de Janeiro, e conhecido pela obra O
coronel e o lobisomem.
Dados da obra:
Lançado
em 1964, é o segundo livro de José Cândido
de Carvalho, sendo lançado em 1964. Conta a história do coronel Ponciano de
Azeredo Furtado, membro da Guarda Nacional, de menino a herdeiro, de
Mata-Cavalo (alusão à casa de Dom Casmurro) e Sobradinho, entre outras
propriedades, a especulador de açúcar e cavaleiro quixotesco, além do amor por
Esmeraldina. É narrado pelo próprio Coronel, de forma que é a sua visão dos
acontecimentos.
Passagens:
Simeão
deu todo poder de mando a Francisquinha, negra de confiança, vinda dos tempos
apagados de meu avô rapazola. Pois digo que essa amizade calhava a contento. A
velha sabia dar ordem na cozinha, governar sala e saleta. Morava no meio de um
bando de negrinhas e afilhadas. Conhecedora da minha fama de maluco por perna,
trancava todas elas nos compartimentos mais protegidos de tramela. Lacrava as
portas com esta ponderação severista:
– Cuidado
com o menino!
E
aproveitei para dar um balanço no caso da pintada. Medi, ponderei e, ao
perceber a pata da nefasta arranhar a janela, tratei de ganhar praça, sempre
recuando em ordem, como competia a quem levava aprendizado militar. Bem
guarnecida andava a parte dos fundos, onde a velha Francisquinha dormia
trancada com suas agregadas. Onça por mais que fosse não ia chegar a recinto
fechado. Certo dessa segurança, fui pedir asilo ao sótão de armas,
compartimento reforçado, sortido de bacamartes e pólvora. Talvez que a
carnicenta tivesse intenção, sei lá o que pensa cabeça de onça, de pernoitar na
cadeira de meu descanso, agasalhada de chuva e vento. Se eu não tivesse preparo
de coragem, talqualmente um Saturnino ou João Ramalho, saía no burro de acordar
léguas de pasto. Sem gabolismo, digo e provo que procedi dentro da prudência e
o resto da noite passei na vigília das armas. Madrugada rompida, canto do galo
de fora, onça recolhida, deixei de velar a segurança do Sobradinho. E, ao abrir
do café, soltei a língua viperina no lombo de todo mundo, tirante a velha
Francisquinha, de meu especial respeito. Que marca de gente era essa que comia
de meu feijão e bebia de minha água? Enfrentava eu dez braças de onça e ninguém
para dizer coronel estou-aqui.
–
Ninguém!
Encontrei
o capitãozinho na lavagem, a cabeça empapada de sanativos. Mirou o dono com
olho tristento de quem estivesse dizendo adeus-vou-embora, pedindo desculpas
por tão grande desgosto. Digo que fiquei de coração quebrado e estive a ponto
de verter lágrimas no peitinho dele. Ia fazer essa vergonha, retirar o galo da
demanda, quando vi Sinhozinho em discussão ferrada no meio de um povaréu de
boiadeiros. Não podia desmerecer da confiança do velho, pelo que mandei Antão
Pereira deixar Vermelhinho por minha conta:
– Quero
ter um particular com esta mimosura.
– Que é
isso, Fonseca? A gente não caiu, homem de Deus. A gente só tropeçou.
Feiçãozinha
triste, rosto desgastado, nem respondeu. Saí da rua do Gás roído de mágoa,
contraído de nó de choro que sufocava a minha garganta. Em poder da moça teúda
e manteúda deixei dois contos de réis. Era tudo o que restava de Mata-Cavalo.
Sem medo,
peito estofado, cocei a garrucha e risquei, com a roseta, a barriga da mulinha
de São Jorge. A danada, boca de seda, obedeceu a minha ordem. O luar caía a
pino do alto do céu. Em pata de nuvem, mais por cima dos arvoredos do que um
passarinho, comecei a galopar. Embaixo da sela passavam os banhados, os
currais, tudo que não tinha mais serventia para quem ia travar luta mortal
contra o pai de todas as maldades. Um clarão escorria de minha pessoa. Do lado
do mar vinha vindo um canto de boniteza nunca ouvido. Devia ser o canto da
madrugada que subia.