Mãe, Valter Hugo. A máquina de fazer espanhóis. Cosac Naify. São Paulo / SP; 2011;
256 páginas.
Breve relato do autor:
Valter
Hugo Mãe é um escritor nascido em Angola, de nacionalidade portuguesa. Atua
também como editor, artista plástico e cantor português.
Dados da obra:
A história gira em
torno de António Jorge da Silva, um barbeiro que acaba de completar 84 anos, e
depois de perder a mulher, é entregue a um asilo. O personagem, que viveu sob o
peso de Salazar, nos tempos em que as ditaduras regiam tudo, coloca o passado e
suas ações em perspectiva, não sem notar que o pessimismo sobre o papel do país
no mundo exacerbou-se ainda mais. Portugal se transformou numa máquina geradora
de sentimento de inferioridade, uma máquina especializada em produzir entre os
nascidos no país à vontade de deixá-lo.
Passagens:
O lar não suporta
mais do que noventa e três pessoas, e, para que uma entre, outra tem de sair. a
saída é dolorosa mas rápida. rodam-se alguns velhos pelos quartos fora.
eventualmente um que esteja acamado vai para a ala esquerda, já muito vizinho
dos mortos, e outro entrará de novo no quarto vago com vista para o jardim. é
frequente que os que sobrevivem chorem diante das portas dos quartos, sabendo
que no interior já não estão os anteriores inquilinos. é frequente que, nas
primeiras semanas, alguém rejeite o novo residente, como se a urgência de este
entrar operasse no cosmos uma pressa em tirar a vida ao outro, e é como se isso
fosse culpável.
... a inconsciência
apaga as dores, claro, e apaga as alegrias, mas já não são muitas as alegrias e
no resultado da conta é bem-visto que a cabeça dos velhos se destitua da razão
para que, tão de frente à morte, não entremos em pânico. a repreensão contínua
passa por essa esperança imbecil de que amanhã estejamos mais espertos quando,
pelas leis mais definidoras da vida, devemos só perder capacidades. a esperança
que se deposita na criança tem de ser inversa à que se nos dirige. e quando eu
fico bloqueado, tão irritado com isso sem dúvida, não é por estar imaturo e
esperar vir a ser melhor, é por estar maduro de mais e ir como que apodrecendo,
igual aos frutos. nós sabemos que erramos e sabemos que, na distração cada vez
maior, na perda de reflexos e de agilidade mental, fazemos coisas sem saber e
não as fazemos por estupidez. Fazemos por descoordenação entre o que está certo
e o que nos parece certo e até sabemos que isso de certo ou errado é muito
relativo. É tudo mais forte do que nós.
... a lembrança da
sua esposa vai trazer-lhe um sorriso aos lábios porque é isso que a saudade
faz, constrói uma memória que nós nos orgulhamos de guardar, como um troféu de
vida. um dia, senhor silva, a sua esposa vai ser uma memória que já não dói e
que lhe traz apenas felicidade. a felicidade de ter partilhado consigo um amor
incrível que não pode mais fazê-lo sofrer, apenas levá-lo à glória de o ter
vivido, de o ter merecido. tenho até inveja de si, senhor silva, porque eu
tenho trinta e um anos e estou por aqui solteiro, já não vou a tempo de ter
cinquenta nos de uma grande paixão.
quando dizemos que
antigamente é que era bom estamos só a ter saudades, queremos na verdade dizer
que antigamente éramos novos, reconhecíamos o mundo como nosso e não de nós próprios,
e não exatamente do regime e menos ainda de salazar.
... quem fomos há de
sempre estar contido em quem somos, por mais que mudemos ou aprendamos coisas
novas.
... podíamos ir
observando o que faziam e diziam os outros velhos. observávamos e sentíamos-nos
distantes e, ao mesmo tempo, presos ali como com ferros. caramba, uma sensação
de impotência terrível, a de estarmos sentados numas cadeiras quietas, quietos,
a sermos apanhados à bruta pela idade, a sermos apanhados à bruta pelas doenças
e pelo cínico de quem ainda é jovem e manda em tudo e nos menospreza como gente
a ficar deficiente. progressivamente, como se a glória da vida se consumasse na
maior das humilhações. observávamos os outros velhos e não sabíamos muito sobre
as suas experiências. mas víamos-lhes os rostos e estes espelhavam as mesmas
dores que os nossos.
depois
confessei-lhe, precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto
de companhia. este resto de vida, américo, que eu julguei já ser um excesso,
uma aberração, deu-me estes amigos. e eu que nunca percebi a amizade, nunca
esperei nada da solidariedade, apenas da contingência da coabitação, um certo
ir obedecendo, ser carneiro. eu precisava deste resto de solidão para aprender
sobre este resto de amizade.
nunca eu teria
percebido a vulnerabilidade a que um homem chega perante outro. nunca teria
percebido como um estranho nos pode pertencer, fazendo-nos falta. Não era nada
esperada aquela constatação de que a família também vinha de fora do sangue, de
fora do amor ou que o amor podia ser outra coisa, como uma energia entre
pessoas, indistintamente, um respeito e um cuidado pelas pessoas todas.
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