Couto, Mia. Antes de nascer o mundo. Companhia das
Letras; São Paulo / SP; 2009; 277 páginas.
Breve relato do autor:
Mia Couto nasceu em
Moçambique. Estudou medicina antes de se formar em biologia. Atualmente
dedica-se a estudos de impacto ambiental. Em 1999, recebeu o prêmio Vergílio
Ferreira pelo conjunto da obra; em 2007, o prêmio União Latina de Literatura
Românicas.
Dados da obra:
Esgueirando-se entre
o sonho e a realidade, entre a prosa e a poesia, Antes de nascer o mundo retrata uma realidade de dimensões míticas
na qual os homens de alguma forma conseguem superar o desespero e resgatar uma
esperança que resiste à voragem da terra e da história.
Passagens:
A primeira vez que vi
uma mulher tinha onze anos e me surpreendi tão desarmado que desabei em
lágrimas. Eu vivia num ermo habitado apenas por cinco homens. Meu pai dera um
nome ao lugarejo. Simplesmente chamado assim: “Jesusalém”. Aquela era a terra
onde Jesus haveria de se descrucificar. E pronto, final.
... Eu nasci para
estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou:
tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem,
silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é
música em estado de gravidez.
O tal camião – a
nova Arca de Noé – chegou ao destino, mas desfaleceu para sempre, à porta
daquilo que viria a ser a nossa casa. Ali apodreceu, ali se converteu no meu
favorito brinquedo, meu refúgio de sonhar. Sentado ao volante da falecida
máquina, eu podia ter inventado viagens infinitas, vencido distâncias e cercos.
Como faria outra qualquer criança, poderia ter dado a volta ao planeta, até que
o universo inteiro me obedecesse. Mas isso nunca sucedeu: o meu sonho não
aprendera a viajar. Quem viveu pregado a um só chão não sabe sonhar com outros
lugares.
– Mas, pai, nos conte. Como faleceu o mundo?
– Na verdade, já não me lembro.
– Mas o Tio Aproximado.
– O Tio conta muita história...
– Então, pai, nos conte o senhor.
– O caso foi o seguinte: o mundo acabou mesmo antes do
fim do mundo.
Terminara o universo
sem espetáculo, sem rasgão nem clarão. Por definhamento, exaurido em desespero.
E assim, vagamente, meu pai derivava sobre a extinção do cosmos. Primeiro,
começaram a morrer os lugares-fêmeas: as nascentes, as praias, as lagoas.
Depois, morreram os lugares-machos: os povoados, os caminhos, os portos.
– Sobreviveu apenas este lugar. É aqui que
vivemos de vez.
Silvestre fez de
conta que não escutou e, impassível, prosseguiu:
– Esperas. É isso que a estrada traz. E são as esperas
que fazem envelhecer.
Mais um passo atrás
e Ntunzi se desamparou num abismo e ainda hoje ele está tombando, tombando,
tombando. Para meu irmão o ensinamento era claro. A cegueira é o destino de
quem se deixa tomar de assalto pela paixão: deixamos de ver quem amamos. Em vez
disso, o apaixonado fita o abismo de si mesmo.
– Mulheres são como as ilhas: sempre longe, mas
ofuscando todo o mar em redor.
... E me falaram,
então, do que havia sucedido no dia em que minha mãe fora a enterrar.
“Enterrar” é apenas um modo de dizer. Afinal, nunca há terra suficiente para
enterrar uma mãe.
Este é o meu
conflito: quando estás, não existo, ignorada. Quando não estás, me desconheço,
ignorante. Eu só sou na tua presença. E só me tenho na tua ausência. Agora, eu
sei. Sou apenas um nome. Um nome que não se acende senão em tua boca.
– Nós, mulheres. Por que aceitamos tanto, tudo?
– Porque temos medo.
O nosso medo maior é
o da solidão. Uma mulher não pode existir sozinha, sob o risco de deixar de ser
mulher. Ou se converte, para tranquilidade de todos, numa outra coisa: numa
louca, numa velha, numa feiticeira. Ou, como diria Silvestre numa puta. Tudo menos
mulher. Foi isto que eu disse a Noci, neste mundo só somos alguém se formos
esposa. É o que agora sou, mesmo sendo viúva. Sou a esposa de um morto.
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