terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Antes de nascer o mundo

Couto, Mia. Antes de nascer o mundo. Companhia das Letras; São Paulo / SP; 2009; 277 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
Mia Couto nasceu em Moçambique. Estudou medicina antes de se formar em biologia. Atualmente dedica-se a estudos de impacto ambiental. Em 1999, recebeu o prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto da obra; em 2007, o prêmio União Latina de Literatura Românicas.
 
Dados da obra:
 
Esgueirando-se entre o sonho e a realidade, entre a prosa e a poesia, Antes de nascer o mundo retrata uma realidade de dimensões míticas na qual os homens de alguma forma conseguem superar o desespero e resgatar uma esperança que resiste à voragem da terra e da história.
 
Passagens:
 
A primeira vez que vi uma mulher tinha onze anos e me surpreendi tão desarmado que desabei em lágrimas. Eu vivia num ermo habitado apenas por cinco homens. Meu pai dera um nome ao lugarejo. Simplesmente chamado assim: “Jesusalém”. Aquela era a terra onde Jesus haveria de se descrucificar. E pronto, final.
 
... Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.
 
O tal camião – a nova Arca de Noé – chegou ao destino, mas desfaleceu para sempre, à porta daquilo que viria a ser a nossa casa. Ali apodreceu, ali se converteu no meu favorito brinquedo, meu refúgio de sonhar. Sentado ao volante da falecida máquina, eu podia ter inventado viagens infinitas, vencido distâncias e cercos. Como faria outra qualquer criança, poderia ter dado a volta ao planeta, até que o universo inteiro me obedecesse. Mas isso nunca sucedeu: o meu sonho não aprendera a viajar. Quem viveu pregado a um só chão não sabe sonhar com outros lugares.
 
– Mas, pai, nos conte. Como faleceu o mundo?
– Na verdade, já não me lembro.
– Mas o Tio Aproximado.
– O Tio conta muita história...
– Então, pai, nos conte o senhor.
– O caso foi o seguinte: o mundo acabou mesmo antes do fim do mundo.
Terminara o universo sem espetáculo, sem rasgão nem clarão. Por definhamento, exaurido em desespero. E assim, vagamente, meu pai derivava sobre a extinção do cosmos. Primeiro, começaram a morrer os lugares-fêmeas: as nascentes, as praias, as lagoas. Depois, morreram os lugares-machos: os povoados, os caminhos, os portos.
Sobreviveu apenas este lugar. É aqui que vivemos de vez.
 
Silvestre fez de conta que não escutou e, impassível, prosseguiu:
– Esperas. É isso que a estrada traz. E são as esperas que fazem envelhecer.
 
Mais um passo atrás e Ntunzi se desamparou num abismo e ainda hoje ele está tombando, tombando, tombando. Para meu irmão o ensinamento era claro. A cegueira é o destino de quem se deixa tomar de assalto pela paixão: deixamos de ver quem amamos. Em vez disso, o apaixonado fita o abismo de si mesmo.
– Mulheres são como as ilhas: sempre longe, mas ofuscando todo o mar em redor.
 
... E me falaram, então, do que havia sucedido no dia em que minha mãe fora a enterrar. “Enterrar” é apenas um modo de dizer. Afinal, nunca há terra suficiente para enterrar uma mãe.
  
Este é o meu conflito: quando estás, não existo, ignorada. Quando não estás, me desconheço, ignorante. Eu só sou na tua presença. E só me tenho na tua ausência. Agora, eu sei. Sou apenas um nome. Um nome que não se acende senão em tua boca.
 
– Nós, mulheres. Por que aceitamos tanto, tudo?
– Porque temos medo.
O nosso medo maior é o da solidão. Uma mulher não pode existir sozinha, sob o risco de deixar de ser mulher. Ou se converte, para tranquilidade de todos, numa outra coisa: numa louca, numa velha, numa feiticeira. Ou, como diria Silvestre numa puta. Tudo menos mulher. Foi isto que eu disse a Noci, neste mundo só somos alguém se formos esposa. É o que agora sou, mesmo sendo viúva. Sou a esposa de um morto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.