quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O Jogo da Amarelinha

Cortázar, Julio. O Jogo da Amarelinha. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro / RJ; 1987; 521 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
Julio Cortázar foi um escritor e intelectual argentino, é considerado um dos autores mais inovadores e originais do seu tempo. Mestre no conto e na narrativa curta.
 
Dados da obra:
 
O Jogo da Amarelinha é considerado a obra máxima do autor. Original e inovador, o livro traz a possibilidade de o leitor começar do capítulo 1 e ir até o 56, tendo assim uma bem construída história sobre um triângulo amoroso. Ou pode optar por começar no capítulo 73, e começar a seguir a ordem indicada por Cortázar. Na segunda opção, aparecem acontecimentos de Maga, Oliveira, o Clube da Serpente e o narrador, além de citações de grandes autores, textos debatendo a literatura atual, artigos sobre os personagens, recortes de um texto maior.
 
Passagens:
 
Preferíamos o encontro casual na ponte, no terraço de um café num cine-clube ou, talvez, curvados sobre um gato em qualquer pátio do bairro latino. Andávamos por Paris sem nos procurarmos, mas sabendo sempre que andávamos para nos encontrar.
E repare, Maga, que acabávamos de travar conhecimento e a vida já tramava o necessário para que nos desencontrássemos minuciosamente. Como você não sabia dissimular, descobri quase imediatamente que, para vê-la como eu queria, era necessário começar por fechar os olhos e, então, surgiam coisas, primeiro como estrelas amarelas (movendo-se como gelatina de veludo), depois como cachoeiras vermelhas de jovialidade e das horas, ingresso paulatino num mundo-Maga que era a falta de jeito e a confusão, mas também levando a assinatura da aranha Klee, do circo Miró, dos espelhos cinzentos Vieira da Silva, num mundo onde você se movia como um cavalo de xadrez que se movesse como uma torre que se movesse como um bispo.
 
Nunca consegui resistir ao desejo de chamá-la para o meu lado, sentindo-a cair pouco a pouco sobre mim, desdobrar-se outra vez, depois d ter estado por um momento tão só e tão apaixonada diante da eternidade do seu corpo.
 
... Tinha a felicidade de poder acreditar sem ver, de poder formar um corpo com a duração, com o contínuo da vida. Tinha a felicidade de se encontrar dentro do quarto, de ter direito de cidadania em tudo o que tocava e em todos aqueles com quem convivia, peixe nadando no rio, folha na árvore, nuvem no céu, imagem no poema. Peixe, folha, nuvem, imagem: exatamente isso, a não ser que...
 
A Maga desconfiava um pouco. Admirava imensamente Oliveira e Etienne, capazes de discutir durante três horas sem parar. Em volta de Etienne e Oliveira, havia algo como um círculo de giz e ela queria entrar nesse circulo, compreender por que razão o princípio da indeterminação era tão importante na literatura, por que motivo Morelli, sobre quem eles tanto falavam, a quem tanto admiravam, pretendia fazer do seu livro uma bola de cristal, no qual o micro e o macrocosmo se uniam numa visão aniquilante.
 
... Entre a Maga e eu cresce um canavial de palavras, estamos separados só por algumas horas e alguns quarteirões e já a minha pena se chama pena, meu amor se chama meu amor... Irei sentindo cada vez menos e recordando cada vez mais, mas o que é recordação, afinal, senão o idioma dos sentimentos, um dicionário de rostos e dias e perfumes que voltam como os verbos e os adjetivos no discurso, adiantando-se disfarçados, à coisa em si, ao presente puro, entristecendo-nos ou lecionando-nos vicariamente até que o próprio ser se torna vigário, o rosto que olha para trás abre muito os olhos, o verdadeiro rosto se mancha pouco a pouco como nas velhas fotografias e Jano, de repente, é igual a qualquer um de nós.
 
– Como é larga esta rua – exclamou Talita, olhando para baixo. – É muito mais larga do que quando a olhamos da janela.
– As janelas são os olhos da cidade – comentou Traveler – e naturalmente deformam tudo o que vêm. Agora, você está num ponto de grande pureza, e talvez esteja vendo as coisas como um pombo ou um cavalo que não sabem que têm olhos.
 
... Você compreende, de vez em quando ocorre-me que lhe poderia dizer... Não sei, talvez no momento as palavras servissem de alguma coisa, nos servissem. Mas como não são as palavras da vida cotidiana e do mate no pátio, do bate-papo lubrificado, a gente recua, o melhor amigo é aquele a quem menos se podem dizer coisas assim. Nunca lhe aconteceu confiar-se muito mais a um outro cara qualquer?
– É possível – concordou Traveler, afinando a guitarra. – O ruim é que com esses princípios já não se sabe para que servem os amigos.
– Servem para estar aí e, um dia, quem sabe?
 
Longo bate-papo com Traveler sobre a loucura. Falando dos sonhos, demo-nos conta, quase ao mesmo tempo, de que certas estruturas sonhadas seriam formas correntes de loucura, a menos que continuassem na vigília. Quando sonhamos nos é dado exercitar de graça nossa aptidão para a loucura. Suspeitamos, ao mesmo tempo, que toda loucura é um sonho que se fixa.
Sabedora do povo: “É um pobre louco, um sonhador...”
 
Uma mesma situação e duas versões... Fico pensando em todas as folhas que serei eu a não ver o coletor de folhas secas, em tanta casa que haverá no ar e que estes olhos não veem, pobres morcegos de romances e cinemas e flores dissecadas. Por todos os lados haverá abajures, haverá folhas que não verei.
 
Outra maneira de tentar dizê-lo: O defectivo sente-se mais como uma pobreza intuitiva do que como uma mera falta de experiência. Na verdade, não me aflijo muito por não ter lido toda a obra de Jouhandeau, sinto no máximo a melancolia de uma vida demasiado curta para tantas bibliotecas, etc. A falta de experiência é inevitável, quando leio Joyce estou sacrificando automaticamente outro livro e vice-versa, etc.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Tia Julia e o Escrevinhador

Llosa, Mario Vargas. Tia Julia e o Escrevinhador. Alfaguara-Objetiva. Rio de Janeiro / RJ; 20077; 359 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
Mario Vargas Llosa é um escritor, jornalista, ensaísta e político peruano, que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2010. Ele ganhou notoriedade literária com a publicação do romance A Cidade e os Cães (1961). Mudou para Paris nos anos de 1960, e lecionou em diversas universidades americanas e europeias, ao longo dos anos.
 
Dados da obra:
 
Mesclando humor e romance, o escritor narra a história de Varguitas, um jovem peruano com ambições literárias que se apaixona por uma tia com quase o dobro da sua idade. Em paralelo a esse romance proibido, na Lima dos anos 50, Varguitas conhece Pedro Camacho, autor excêntrico de radionovelas cujos enredos mirabolantes fascinam os peruanos. As novelas vão muito bem, até o dia em que Pedro Camacho, sobrecarregado, começa a confundir enredos e personagens.
 
Passagens:
 
Escrevo. Escrevo que escrevo. Mentalmente me vejo escrever que escrevo e também posso me ver a me ver escrevendo. Lembro de mim já escrevendo e também me vendo escrever. E me vejo lembrando que me vejo escrever e me lembrando que me vejo lembrando que escrevia e escrevo me vendo escrever que me lembro de ter me visto escrever que me via escrevendo que lembrava de ter me visto escrever que escrevia e que escrevia que escrevo que escrevia. Também posso me imaginar escrevendo que já havia escrito que me imaginaria escrevendo que havia escrito que imaginava a mim escrevendo que me vejo escrever que escrevo.
Salvador Elizondo, o grafógrafo.
 
Tentei uma investigação parecida em outras casas de parentes e os resultados foram vagos.  As tias Gaby, Laura, Olga e Hortensia gostavam das novelas porque eram divertidas, tristes ou fortes, porque as distraíam e faziam sonhar, viver coisas impossíveis na vida real, porque mostravam algumas verdades ou porque sempre se tinha um pouquinho de espírito romântico. Quando perguntei por que gostavam mais que dos livros, protestaram: que bobagem, como dá para comparar, livros eram cultura, as novelas simples disparates para passar o tempo. Mas o certo é que viviam grudadas no rádio e que eu nunca tinha visto nenhuma delas abrir um livro...
 
... O mecânico tinha batido na porta assim, e, quando ela abriu, tinha olhado para ela assim e falado assim, e depois tinha se ajoelhado assim, jurando que a amava assim. Aturdidos, hipnotizados, o juiz e o secretário viam a menina-mulher adejar como uma ave, empinar como uma bailarina, agachar-se e subir, sorrir e zangar-se, modificar a voz e duplicá-la, imitando a si mesma e a Gumercindo Tello e, por fim, cair de joelhos e declarar (-se, -lhe) seu amor...
 
Esses encontros nos cafés do centro de Lima eram pouco pecaminosos, longas conversas muito românticas, “fazendo empanadinhas”, nos olhando nos olhos e, se a topografia do local permitia, roçando os joelhos. Só nos beijávamos quando ninguém podia nos ver, o que raramente acontecia, porque a essas horas os cafés estavam sempre cheios de grossos funcionários de escritório. Falávamos de nós, claro, dos perigos que corríamos de ser surpreendidos por algum membro da família, da maneira de evitar essas perigos, contávamos um ao outro, com riqueza de detalhes, tudo o que tínhamos feito desde o último encontro (quer dizer, algumas horas antes ou no dia anterior), mas, por outro lado, jamais fazíamos nenhum projeto para o futuro. O porvir era um assunto tacitamente abolido de nossas conversas, sem dúvida porque, tanto ela como eu, estávamos convencidos de que nossa relação não tinha nenhum. Porém, penso que isso que havia começado como uma brincadeira foi se tornando coisa séria nos castos encontros dos cafés enfumaçados do centro de Lima. Foi aí que, sem nos darmos conta, fomos nos apaixonando.
 
Prometi fazer o possível, mas sem muitas esperanças porque o escriba era um homem de convicções inflexíveis. Eu tinha chegado a me sentir amigo dele; além da curiosidade entomológica que me inspirava, tinha apreço por ele. Mas seria recíproco? Pedro Camacho não parecia capaz de perder seu tempo, sua energia, na amizade nem em nada que o distraísse de sua arte, isto é, seu trabalho ou vício, essa urgência que eliminava homens, coisas, apetites. Embora fosse verdade que a mim tolerava mais que a outros. Tomávamos café (ele hortelã com erva-cidreira) e eu ia a seu cubículo e lhe servia de pausa entre duas páginas. Escutava-o com suma atenção e isso talvez o lisonjeasse; talvez me tivesse por um discípulo, ou, simplesmente, era para ele o que é o cachorrinho de colo para a solteirona e as palavras cruzadas para o aposentado: alguém, ou alguma coisa com que preencher os vazios.
 
Ele começou com quatro novelas por dia, mas em vista do sucesso, foram aumentando até dez, que eram transmitidas de segunda a sábado, com Curaçao de meia hora cada capítulo (na verdade, 23 minutos, pois a publicidade açambarcava sete). Como dirigia e interpretava todos, devia permanecer no estúdio umas sete horas diárias, calculando que o ensaio e a gravação de cada programa durassem quarenta minutos (entre dez e 15 para sua arenga e os ensaios). Escrevia as novelas à medida que iam sendo transmitidas; constatei que cada capítulo lhe tomava o dobro do tempo de sua interpretação, uma hora. O que significava, de qualquer modo, umas dez horas na máquina de escrever. Isso diminuía um pouco graças aos domingos, seu dia livre, que ele, claro, passava no seu cubículo, adiantando o trabalho da semana. Seu horário era, portanto, de 15 a 16 horas de segunda a sábado e de oito a dez nos domingos. Todas elas praticamente produtivas, de rendimento artístico sonante.
 
– Meus escritos se conservam num lugar mais indelével do que os livros – me instruiu, no ato: – A memória dos ouvintes.
 
A lavadeira Teresita praticava uma filosofia de criação intuitivamente inspirada em Esparta ou em Darwin que consistia em fazer saber a seus filhos que, se tinham interesse em continuar nesta selva, tinham de aprender a receber e dar mordidas, e que essa história de tomar leite e comer era assunto que dizia respeito inteiramente a eles desde os 3 anos de idade, porque, lavando roupa dez horas por dia e distribuindo-a por Lima outras oito horas, só conseguiam sobreviver ela e as crias que não tinham completado a idade mínima para dançar com as próprias pernas.