quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Malagueta, Perus e Bacanaço

Antonio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço. Cosac Naify. São Paulo / SP; 2004; 222 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
João Antonio foi um jornalista e escritor paulistano, criador do conto-reportagem no jornalismo brasileiro, que se tornou conhecido por retratar os proletários e marginais que habitam as periferias das grandes cidades.
 
Dados da obra:
 
Publicado em 1963, o livro atingiu imediatamente sucesso de público e crítica. Recebeu inúmeros prêmios, entre eles o Prêmio Jabuti, nas categorias "Revelação" e "Melhor livro de contos", e o Prêmio Fabio Prado. É o primeiro livro do autor e trata de um conto longo, dividido em seis partes que recebem os nomes dos locais por onde passam os personagens: Lapa, Água Branca, Barra Funda, Cidade, Pinheiros e, por último, e de novo, Lapa. A narrativa transcorre em uma única noite, num bar, no velho salão de sinuca onde se encontram os três parceiros.
 
Passagens:
 
Andando tão devagar. Procurava alguma coisa na tarde. O vento esfriou. Não sabia bem o que, era um vazio tremendo. Mas estava procurando. Os ônibus passavam carregando gente que volta do cinema. Para essa gente de subúrbio mesquinho, semana brava suada nas filas, nas conduções cheias, difíceis, cinema à tarde, pelo domingo, me grande coisa. Viaja-se encolhido, apertado. Os ônibus se enchem.
 
... Parece-me que procurava conversa, por causa dum Huxley que viu repousando nos meus joelhos. Eu, Huxley e tampinhas somos coincidências. Que se encontraram e que se dão bem. Perguntou o que eu fazia na vida. A pergunta veio com jeito, boas palavras, delicada, talvez não querendo ofender o silêncio em que eu me fechava. Quase respondi...
– Olhe: sou um cara que trabalho muito mal. Assobia sambas de Noel com alguma bossa. Agora, minha especialidade, meu gosto, meu jeito mesmo, é chutar tampinhas de rua. Não conheço chutador mais fino.
 
Quem poderia entender aquele homem?
Agora a caminho da subsistência. À Lapa, buscar pão e carne na subsistência, viagem de todas as manhãs. Eu gostava do volante, adorava o volante. E mais, gostava daquelas idas à Lapa, porque me deixavam sozinho, atravessando a cidade toda, todinha. E bairros, e bairro, lá ia eu, Santa Cecília, Perdizes, Pompéia, ia tão contente no caminhão, que o caminhão parecia meu.
 
Quis seguir estrada, o atalho me surpreendeu. Uns dez minutos e estaria na vila. Sapos nas pocinhas das beirada do campo de futebol. Até há pouco, aquilo era do futebol da molecada. Indústrias querem surgir acompanhando a estrada de ferro, acompanhando tudo, provavelmente serão usinas de concreto. Várzea escura, breu. Meu pai disse-me que, quando menino na Europa, transpunha vales escuros, para pastoreio, onde lobos uivavam. Aqui há mosquitos e fartum do curtume próximo. Luzes ao longe, luzes da serraria. Posso caminhar olhando-as. Ás vezes, faço de conta que são guias, que eu sigo para alcançar a vila. Pena não encontrar Carlinhos, não estaria tateando este breu.
 
Ó Deus, como... por que é que certos tipos se metiam a jogar o joguinho? Meus olhos se entristeciam, meus olhos gozavam. Mas havendo entusiasmo, minha vida ferveu. Conheci vadios e vadias. Dei-me com toda a canalha. Aos catorze, num cortiço da Lapa-de-baixo conheci a primeira mina. Mulatinha, empregadinha, quente. Ela gostava da minha charla, a gente se entendia. Eu me lembro muito bem. Ás quintas-feiras, quatro pancadas secas na porta. Duas a duas.
 
Estavam os três quebrados, quebradinhos. Mas imaginavam marotagens, concluios, façanhas, brigas, fugas, prisões – retratos no jornal e todo o resto –, safadezas, tramoias; arregos bem arrumados com caguetes, trampolinagens, armações de jogos que lhes dariam um tufo de dinheiro; patrões caros aos quais fariam marmelo, traição; imaginavam jogos longínquos, lá pelos longes dos subúrbios, naquelas bocas do inferno nem sabidas pela polícia; principalmente imaginavam jogos caros, parceirinhos fáceis, que deixariam falidos, de pernas para o ar. E em pensamento funcionavam. E os três comendo as bolas, fintando, ganhando, beliscando, furtando, quebrando, entortando, mordendo, estraçalando...
 
O Mova para Cornélio e uma quina para Bacanaço. E os três iriam firmes, à grande e de enfiada, afiados como piranhas. Bacanaço chefiando. Vasculhariam todos os muquinfos, rodariam Água Branca, Pompeia, Pinheiros, Mooca, Penha, Limão, Tucuruvi, Osasco... Rodariam e se atirariam e iriam lá. Três tacos, direitinhos como relógios, levantariam no fogo do jogo um tufo de dinheiro, Ti8nham a noite e a madrugada. Virariam São Paulo de pernas para o ar.
 
Cada um tem a sua bola numerada e que não pode ser embocada. Cada um defende a sua e atira na do outro. Aquele se defende e atira na do outro. Assim, assim, vão os homens nas bolas. Forma-se a roda com cinco, seis, sete e até oito homens. O bolo. Cada homem tem uma bola que em duas vidas. Se a bola cai o homem perde uma vida. Se perder as duas vidas poderá recomeçar com o dobro da casada. Mas ganha uma vida só...
Fervia no Joana d´Arc o jogo triste da vida.

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