Cruz, Afonso. Os livros que devoraram meu pai. Leya; São
Paulo / SP; 2011; 112 páginas.
Breve relato do autor:
Afonso Cruz é um
escritor premiado, realizador de filmes de animação, ilustrador e músico
português.
Dados da obra:
Vivaldo Bonfim é um escriturário entediado que, escondido de
seu chefe, lê romances e clássicos da literatura durante o expediente, na
repartição de finanças onde está empregado. Um dia, enquanto finge trabalhar,
perde-se nas páginas de um livro e desaparece deste mundo. Esta é sua
verdadeira história - contada em primeira pessoa por Elias Bonfim, seu filho,
que recebe como herança a biblioteca de Vivaldo e, então, inicia uma aventura
pelos grandes clássicos em busca de seu pai, percorrendo obras repletas de
assassinos, paixões devastadoras, feras e outros perigos feitos de letras.
Passagens:
Soube pela minha avó
que um tal Orígenes, por exemplo, dizia existir uma primeira leitura
superficial, e outras mais profundas, alegóricas. Não vou me alongar nesse
tema, basta saber que um bom livro deve ter mais do que uma camada, deve ser um
prédio de vários andares. O rés do chão não serve à literatura. É adequado para
a construção civil, é cômodo para quem não gosta de subir escadas, útil para
quem não pode subir escadas, mas, para a literatura, tão necessários andares
empilhados uns sobre os outros. Escadas e escadarias, letras abaixo, letras
acima.
Sr. Prendick ladrou
uns insultos, e Sr. Hyde mostrou sua bengala nervosa. Ficaram os dois ali,
tensos, um olhando para o outro, sem saberem muito bem quem era animal e quem
era homem. Julgo que a conclusão de um livro chamado A Revolução dos Bichos, de um tal Orwell, se adapta perfeitamente
àquela situação: eles se olhavam e havia pouca diferença entre o animal e o
homem. Acabei com aquela cena que se preparava para ser bastante violenta.
Não voltei a visitar
Sr. Hyde e sua bengala nervosa. Agora o desafio era outro: precisava encontrar
Raskolnikov. Procurei-o entre as obras de outros russos e, por mera sorte,
acabei por encontrá-lo no segundo livro que tirei da estante, logo a seguir ao A Mãe, de Gorki. O livro chamava-se Crime e Castigo. Tinha uma lombada
grossa, e eu o abri com cuidado, por causa daquela obesidade toda que se
manifestava em largas centenas de páginas. Era pesado como um feijoada, e a
encadernação parecia a de uma Bíblia. O título esparramava-se em letras
douradas, muito brilhantes. Por baixo dele, lia-se o nome do autor: Fiódor
Dostoiévski.
Para uns, a raiz é a
parte invisível que permite à árvore crescer. Para mim, raiz é a parte
invisível que a impede de voar como os pássaros. Na verdade, uma árvore é um
pássaro defeituoso.
– Os livros
encostados uns aos outros, em uma prateleira, são universos paralelos! – gritei
para a sala, mas não obtive resposta.
– Exatamente, Sr.
Bonfim. Quando vemos uma bela flor num deserto, a admiramos, mas quando
passamos a vida rodeados de belas flores, não reparamos nelas. Perdem todo o
significado da individualidade, de ser único. É o preço da quantidade e, se
quer saber, caro Bonfim, é o mal dos tempos. Tudo é muito, vivemos nesse reino
de quantidades, rodeados de coisas para que nos esqueçamos de nós mesmos e do
que se passa aqui dentro.
– Nada mais certo.
Todavia, de uns anos para cá tem acontecido algo que certamente não era
esperado. Os livros começaram ser modificados. As pessoas que os decoram não
resistem a alterar uma ou outra situação. Depois ensinam com os maneirismos as
suas modificações, e, aos poucos, as histórias vão se alterando radicalmente. O
que fazer? O ser humano não prescinde de colocar sua assinatura na casca das
árvores, nas pedras, nos banheiros. Muitas vezes, só para dizer que está ali,
presente.
– Nossas memórias
nunca são verdadeiras ou absolutamente verdadeiras são apenas uma
interpretação. Existem outras, e, ao longo dos anos começamos a ver o passado
com uma luz diferente. Nossas memórias passam a ser vistas de diferentes
perspectivas, conforme aquilo que aprendemos e de acordo com aquilo que
sentimos no instante em que relembramos.
... Continuei a ler
compulsivamente, e julgo que acabei por encontrar meu pai. Não por ter lido um
sótão inteiro (e mais, muito mais), mas por ter me tornado pai eu próprio.
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