quinta-feira, 7 de maio de 2015

Alabardas, alabardas...

Saramago, José. Alabardas, alabardas. Espingardas, espingardas. Companhia das Letras; São Paulo / SP; 2014; 111 páginas.

Breve relato do autor:

José Saramago foi um escritor, argumentista, teatrólogo, ensaísta, jornalista, dramaturgo, contista, romancista e poeta português. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 1998 e o Prêmio Camões.

Dados da obra:

Antes de morrer, José Saramago deixou um projeto inconcluso no computador: Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas – no qual criava a história de Artur Paz Semedo, um homem comum que trabalha na fábrica de armas Produções Belona S.A.
Funcionário exemplar, Semedo era casa com Felícia, uma pacifista radical.

Passagens:

Qual deles vou levar, perguntou o livreiro. Arthur paz semedo conservava algumas luzes da língua de moliére, herança difusa dos seus tempos de liceu, mas temeu que a escrita do autor estivesse muito acima das suas capacidades de compreensão e optou por uma solução salomônica. Levo os dois.

... É uma história comovedora, sobretudo aquela descida da serra de teruel. Custa a segurar as lágrimas, é certo, Eu confesso que chorei, disse Arthur paz semedo. Já to disse, também eu, disse felícia. Houve um silêncio. Podia-se pensar que estavam contentes por terem partilhado uma emoção tão forte, quem sabe se por coincidência sentados na mesma cadeira do cinema, mas nunca o reconheceriam, fazê-lo seria dar uma mostra de debilidade sentimental de que o outro poderia vir a aproveitar-se.

... Não procures encomendas assinadas pelo general franco, nas as encontrarias, os ditadores só usam a caneta para assinar condenações à morte. E desligou antes de que ele pudesse responder.

... Estou no arquivo, disse ele, e ela, de lá, Fala mais alto, parece que estás no fundo de um túmulo. Mas ela sabia quanta razão tinha, aquelas prateleiras, vergadas ao peso dos papéis, estavam carregadas de mortos que talvez tivesse sido preferível deixar entregues ao sono eterno em vez de os arrancar da obscuridade e da importância resignada em que permaneciam há quase um século.

sexta-feira, 27 de março de 2015

Morangos Mofados

Abreu, Caio Fernando. Morangos Mofados. Editora Brasiliense; São Paulo / SP; 1982; 153 páginas.

Breve relato do autor:

Caio Fernando Abreu foi um jornalista, dramaturgo e escritor brasileiro. Sua obra, escrita num estilo econômico e bem pessoal, fala de sexo, de medo, de morte e, principalmente, de angustiante solidão. Apresenta uma visão dramática do mundo moderno e é considerado um "fotógrafo da fragmentação contemporânea".

Dados da obra:

Em Morangos Mofados, o autor apresenta contos que mostram a fé fundamental que iluminou o projeto libertário da contracultura. É o quarto livro de contos do escritor, sendo considerado sua obra-prima pela crítica literária. Foi escrito em 1982 e aclamado como o melhor livro daquele ano pela revista Isto É.

Passagens:

Diálogo
A – Você é meu companheiro.
B – Hein?
A – Você é meu companheiro, eu disse.
B – O quê?
A – Eu disse que você é meu companheiro.
B – O que é que você quer dizer com isso?
A – Eu quero dizer que você é meu companheiro. Só isso.
B – Tem alguma coisa atrás, eu sinto.

... não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser continuar, tem coisa mais destrutiva que insistir sem fé nenhuma?

... a verdade é que chega-se sempre longe demais quando não se quer Ir Direto Aos Fatos, mas o problema de Ir Direto Aos Fatos é que não há cir-cun-ló-qui-os então, e a maioria das vezes a graça está justamente nesses Vazios Volteios Virtuosos, digamos assim? Que não haja beleza nos fatos desde que se vá direto a eles? Ou que não haja mistério, que seja insuportavelmente dispensável gostar dos cir-cun-ló-qui-os. Ultrapasse-os. Acontece que. Nada acontece...
(Os companheiros)

... O quê? – perguntei. Você é gostoso, ele disse.
Não parecia bicha nem nada: só um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o meu, que por acaso era de homem também. Eu estendi a mão aberta, passei no rosto dele falei, qualquer coisa. O quê? - perguntou. Você é gostoso, eu disse. Eu era só um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o dele, que por acaso era de homem também.
(Terça-feira gorda)

... Você vai pegar um resfriado, ele falou com a mão no meu ombro. Acho que foi aí que percebi que não usávamos máscara. Lembrei que tinha lido em algum lugar que a dor é a única emoção que não usa máscara. Não tínhamos dor, mas aquela coisa daquela hora que a gente estava sentindo, e eu nem sei se era alegria, também não usava máscara. Então pensei devagar que era proibido ou perigoso não usar máscara.
(Terça-feira gorda)

Preciso de algo que me tire desta janela e logo após, ainda, do depois. Querer um sentido me leva a querer um depois, os dois vêm juntos, se é que você me entende.
(Luz e sombra)

... e logo lembrei daquele inábil escoteiro que em tempos imemoriais, inconfessáveis sob pena de revelar um coração já marcado pelas intempéries da existência, deixei que ensaiasse em minha exuberante geografia seus hesitantes primeiros passos, e após trinta e seis meses de proveitosa aprendizagem permiti que partisse, disseminando por outras paragens toda a sabedoria que, com trágica paciência e dilacerada alegria, concedi que extirpasse de mim, pois sempre soube ser eu, loura febril, nada mais que a primeira, jamais a derradeira, jamais a única, jamais a para-sempre, a escolhida de seus esplêndidos ventre juvenil.
(Fotografias)

Não ofereço perigo algum: sou quieta como folha de outono esquecida entre as páginas de um livro, sou definida e clara como o jarro com a bacia de ágata no canto do quarto se tomada com cuidado, verto água limpa sobre as mãos para que se possa refrescar o rosto mas, se tocada por dedos bruscos, num segundo me estilhaço em cacos, me esfarelo em poeira dourada.
(Fotografias)

 – Cecília Meireles, era Cecília Meireles, era um poema assim que eu dizia: Levai-me por onde quiserdes / aprendi com as primaveras a deixar-me cortar / e a voltar sempre inteira.
(Caixinha de música)

Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra – talvez por isso, quem sabe?
Mas nenhum se perguntou.
(Aqueles dois)

quinta-feira, 5 de março de 2015

O livro das crueldades

Highsmith, Patricia. O Livro das Crueldades. Companhia das Letrinhas; São Paulo / SP; 1989; 181 páginas.

Breve relato do autor:

Patricia Highsmith foi uma escritora famosa pelos seus thrillers criminais psicológicos. Iniciou a carreira na década de 1940, escrevendo roteiros para histórias quadrinhos para editora Nedor, sobretudo as do super-herói Black Terror. Tornou-se mundialmente famosa por Strangers on a Train, que teve já várias adaptações para cinema, e pela série Ripliad com a personagem Thomas Ripley. Escreveu também muitas histórias curtas.

Dados da obra:

São 13 contos, nos quais Patricia Highsmith coloca à solta os animais, que podem ter uma pacífica aparência doméstica, mas que matam quando necessário. Tal como os humanos. Na ficção da escritora matar é apenas uma questão de necessidade e oportunidade.

Passagens:

Ele é alto e jovem e tem o cabelo ruivo. Gosta de se exibir estalando um longo chicote em minha direção. Acha que pode me obrigar a fazer coisas com cutucões e ordens. Seu bastão tem uma ponta afiada de metal que é irritante, embora não me penetre a pele. Steve aproximou-se de mim como uma criatura aproxima-se de outra, travando relações comigo e sem supor que eu viesse a ser o que ele esperava. Foi por isso que nos demos bem. Cliff, no fundo, não gosta de mim. Entre outras coisas não faz nada para me proteger das moscas, no verão.
(O Finalíssimo Espetáculo da Corista)

Mahmet arrancou a túnica. Arrancou o turbante também. Atirou as duas coisas em Djemal.
Surpreso, Djemal mordeu a roupa malcheirosas balançando a cabeça como se tivesse os dentes cravados no pescoço de Mahmet, sacudindo-o até matá-lo. Rosnava e atacava o turbante, agora desfeito num longo pano sujo. Comeu parte do turbante e com uma das grandes patas dianteiras pisoteou o resto.
Mahmet, atrás da árvore, começou a respirar melhor. Sabia que os camelos podem desabafar a ira na roupa do homem a quem odeiam e que depois se acalmam. Esperava que fosse assim, desta vez. Não gostava de ideia de voltar a pé para Khassa. Queria ir até Elu-Bana, que considerava “sua casa”.
(A Vingança de Djemal)

Gostava mesmo era de se deitar ao sol com a dona numa das espreguiçadeiras de lona que havia no terraço de casa. Mas não gostava das pessoas que ela às vezes convidava, dezenas de pessoas que passavam a noite, que ficavam acordadas até tarde, comendo e bebendo, ouvindo discos ou tocando piano – pessoas que o separavam de Elaine. Pessoas que lhe pisavam nas patas; pessoas que, às vezes, o pegavam por trás, desprevenido, e ele tinha de lutar para se soltar; pessoas que lhe passavam a mão com rudeza; pessoas que às vezes fechavam alguma porta, deixando-o trancadi. Gente! Ming detestava gente. No mundo inteiro, só gostava de Elaine. Ela o amava e compreendia.
(A Maior Presa de Ming)

– Neste rato – começou Alden, também baixinho.
Mas parou para pegar, com dedos levemente trêmulos, a ponta de uma saborosa salsicha do pãozinho com manteiga a sua frente. Jogou-a para o rato, que recuou um pouco, depois disparou para a salsicha, pegou-a e mastigou-a, segurando-a com o toco de pata.
– Este rato tem força – disse, afinal – Imagine tudo o que ele passou. E nem por isso ele desistiu, não foi?
(O Rato mais Corajosos de Veneza)

... Das criaturas de duas pernas não vinha nada de confiável e abundante, talvez uma tigela de leite e pão, mas não todo dia, nada que se pudesse contar. Mas no grande cavalo avermelhado, tão pesado e lento, a gatinha cinzenta passava a reconhecer um amigo confiável. Vira cavalos antes, mas nenhum tão grande quanto aquele. Nunca chegara perto de um cavalo, nunca tocara nenhum. Achava isso divertido e perigoso...
(Cavalo-motor)

Os outros gatos deviam estar caçando. Bess procurou até no estábulo, mas não encontrou o gatinho. Então olhando de relance para Fanny no campo, de cabeça baixa a mastigar trevos, deu com o gatinho, a fazer cabriolas e correr ao sol em torno dos cascos da água, como uma baforada de fumaça soprada de uma lado para o outro. A leveza e a energia do gatinho fascinaram Bess por alguns momentos. Que contraste, notou, com seu peso terrível, sua lentidão, sua idade! Seguiu sorrindo, na direção do portão. O gatinho ia gostar do osso.
(Cavalo-motor) 

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Caos, o cachorro

Viana, Tathyana. Caos, o cachorro. Alfaguara (Objetiva); Rio de Janeiro / RJ; 2014; 48 páginas.

Breve relato do autor:

Tathyana Viana é formada em Produção Editorial e mantém um blog – www.tathyviana.com.br, onde coloca suas “ideias sobre a vida e a escrita”, com direito a “livros, cachorros, bolos e sonhos”.

Dados da obra:

O livro conta a história de um vira-lata que, logo nas primeiras páginas, é deixado na rua em uma noite chuvosa e fria ainda filhote. Cada capítulo é construído com um nome para o cão e seus possíveis donos, com direito ainda a uma estadia pelas ruas, onde conhece um companheiro, outro cão, abandonado como ele, mas mais velho e, portanto, mais “escolado”. Juntos, começam uma bela amizade entre altos e baixos.

Passagens:

Apesar de ter que usar aqueles sapatos ridículos eu adorava passear: ruas, cheiros novos, trânsito, pessoas, outros cães, espaço, oxigênio! Eu farejava a liberdade e adorava aquele aroma.

Corri como nunca pude correr antes. Pelo caminho fui deixando para trás coleira, sapatos e tudo o que tinha vivido até ali. Nada mais me prendia: adeus caixa, gaiolas, banheiros. Chega de ser puxado pela coleira, contido, preso. Estava livre. Alguma coisa canina dentro de mim me mostrou como é que se corria e eu corri.

Aqui o tempo vira uma coisa maluca: entre correr e descansar, ter fome e sede, e sentir a liberdade, passaram-se muitos dias e muito chão. De repente aconteceu: encontrei um igual. Um vira-lata marrom, tão perdido e sozinho quanto eu. Criamos uma amizade que só um cão fiel pode entender. Desde a primeira vez que cheiramos o rabo um do outro soubemos que seríamos amigos para sempre.

Passamos fome, pegamos chuva, vivemos na correria. Fomos enxotados e compartilhamos comida, pulgas e carrapatos.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

O gato e o escuro

Couto, Mia. O Gato e o Escuro. Companhia das Letrinhas; São Paulo / SP; 2008; 39 páginas.

Breve relato do autor:

Mia Couto nasceu em Moçambique. Estudou medicina antes de se formar em biologia. Atualmente dedica-se a estudos de impacto ambiental. Em 1999, recebeu o prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto da obra; em 2007, o prêmio União Latina de Literatura Românicas.

Dados da obra:

Pintalgato vive sendo alertado pela mãe para que não ultrapasse a fronteira do dia. Mas ele, louco para descobrir o que se esconde sob a sombra da noite, decide se aventurar e acaba tendo um encontro inusitado com o escuro. Mia Couto elabora uma bela fábula sobre as aflições e o encantamento com o desconhecido.

Passagens:

– Os meninos têm medo de mim. Todos têm medo do escuro.
– Os meninos não sabem que o escuro só existe é dentro de nós.
– Não entendo, Dona Gata.
– Dentro de cada um há o seu escuro. E nesse escuro só mora quem lá inventamos. Agora me entende?
– Não estou claro, Dona Gata.
– Não é você que mete medo. Somos nós que enchemos o escuro com nossos medos.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Morte em Veneza

Mann, Thomas. Morte em Veneza. Folha de S. Paulo; São Paulo / SP; 2003; 94 páginas.

Breve relato do autor:

Thomas Mann é um escritor alemão que recebeu o Nobel de Literatura de 1929. É considerado um dos maiores romancistas do século XX .

Dados da obra:

Publicado em 1912, Morte em Veneza é uma escrita complexa e profunda, na qual quase cada parágrafo pode ter várias leituras. O enredo é praticamente inexistente: um homem de meia-idade viaja até Veneza, apaixona-se platonicamente por um jovem rapaz polaco extremamente atraente. Mas o importante na obra é a discussão da arte, do belo e do ideal da beleza.

Passagens:

... Mesmo sob o prisma pessoal, a arte é uma vida elevada. Ela traz uma felicidade mais profunda e um desgaste mais acelerado. Grava no rosto de seu servidor os traços de aventuras imaginárias e espirituais, e com o tempo, mesmo no caso de uma vida exterior de uma placidez monástica, provoca uma perversão, um refinamento, um cansaço e uma excitação dos nervos, que mesmo uma vida cheia de paixões e prazeres desvairados dificilmente poderia produzir.

As observações e as vivências do solitário calado são ao mesmo tempo mais difusas e intensas do que as dos seres sociáveis, seus pensamentos, mais graves, mais fantasiosos e sempre marcados por um laivo de tristeza. Imagens e impressões que facilmente seriam esquecidas com um olhar, um sorriso, uma troca de opiniões ocupam-no mais do que o devido, aprofundam-se no silêncio, ganham significado, transformam-se em vivência, aventura, sentimento. A solidão engedra o original, o belo ousado e surpreendente, o poema. Mas engedra também o inverso, o desmedido, o absurdo e o ilícito.

O deus do Amor, na verdade, age como os matemáticos que mostram às crianças imagens concretas das formas puras que estão além de seu alcance; assim também o deus para nos tornar visível o imaterial, gosta de utilizar da forma e cor de um jovem corpo humano, que ela adorna com todo o reflexo da beleza, para fazer dele um instrumento da recordação, levando-nos assim, ao vê-lo a nos inflamarmos em dor e esperança.

... Pois a beleza, meu caro Fedro, e apenas ela, é simultaneamente visível e enlevadora. Ela é – nota bem – a única forma ideal que percebemos por meio dos sentidos e que nossos sentidos podem suportar. Ou o que seria de nós se acaso o Divino, a Razão, a Virtude e a Verdade se dispusessem a aparecer aos nossos sentidos? Não iríamos sucumbir consumidos pela chama do amor, qual Sêmede outrora diante de Zeus? Assim, a beleza é o caminho que conduz ao espírito o homem sensível – apenas o caminho, um meio apenas, pequeno Fedro...

Não há nada maios estranho e melindroso do que a relação entre pessoas que só se conhecem de vista, que se encontram e se observam diariamente, ou mesmo a toda hora sem um cumprimento, sem uma palavra, forçadas a manter uma aparente indiferença de desconhecidos, por imposição dos costumes, ou por capricho pessoal. Há entre elas inquietação e curiosidade exacerbada, a histeria de uma necessidade insatisfeita, artificialmente reprimida, de travar conhecimento e comunicar-se, e também, sobretudo, uma espécie de respeito carregado de tensão. Pois o ser humano ama e respeita seu semelhante enquanto não tem condições de julgá-lo, e o desejo é produto de um conhecimento imperfeito.

... Era mais belo do que se poderia dizer, e Aschenbach sentiu dolorosamente, como já o sentira tantas vezes, que, se a palavra mal pode enaltecer a beleza sensível, é inteiramente incapaz de reproduzi-la.

... Alegria, surpresa, deslumbramento deviam sem dúvida estampar-se abertamente em sua fisionomia, quando seu olhar encontrou o do desaparecido – e nesse segundo aconteceu que Tadzio sorriu: sorriu para ele, um sorriso apreensivo, confiado, sedutor e franco, com lábios que só lentamente se abriam ao sorrir. Era o sorriso de Narciso debruçado sobre o espelho d´água, aquele sorriso profundo, enfeitiçado, prolongado, com que estende os braços ao reflexo da própria beleza – um sorriso com um leve toque de contrariedade, pela vanidade de sua ambição de beijar os graciosos lábios de sua sombra, um sorriso coquete, curioso, ligeiramente atormentado, fascinado e fascinante.

Aquele que recebeu esse sorriso fugiu dali, carregando-o consigo como uma dádiva fatídica. Estava tão abalado que se viu forçado a fugir da luz do terraço e do jardim da frente, buscando com passos precipitados a escuridão do porque dos fundos. Admoestações singularmente indignadas e ternas escapavam-lhe: “Não deves sorrir assim! Estás ouvindo? Não se deve sorrir assim para ninguém!” Atirou-se num banco, fora de si inalando o perfume noturno das plantas. E reclinado, os braços pendentes, subjugado e sacudido a eterna fórmula do desejo – impossível, neste caso, absurda, abjeta, ridícula, mas ainda assim sagrada, mesmo neste caso, digna: “Eu te amo!”

... “É preciso manter silêncio!”. Mas ao mesmo tempo seu coração se enchia de satisfação pela aventura em que o mundo exterior ameaçava a envolver-se. Pois a paixão, tal como o crime, não se adapta à ordem estabelecida, ao bem-estar da marcha do cotidiano, e qualquer desarranjo da estrutura burguesa, qualquer perturbação e tribulação do mundo têm de lhe ser bem-vindos, pois ela pode alimentar a vaga esperança de encontrar aí algum proveito.

... Seus nervos absorviam avidamente os sons lamuriosos das melodias vulgares e lânguidas, pois a paixão paralisa o senso crítico e se envolve a sério em encantos, que a sobriedade aceitaria apenas humoristicamente, ou rejeitaria com irritação.

... para quem está fora de si nada parece mais detestável do que retornar a si mesmo.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Will Eisner

Schumacher, Michael. Will Eisner – um sonhador nos quadrinhos. Biblioteca Azul - Globo; São Paulo / SP; 2013; 408 páginas.

Breve relato do autor:

Michael Schumacher é um autor norte-americano, que tem mais de dez livros publicados. Entre eles, biografias de Allen Ginsberg, Eric Clapton, Phil Ochs, George Mikan e Francis Ford Coppola.

Dados da obra:

Will Eisner foi um pioneiro que alçou as HQs ao status de “nona arte”. A biografia Will Eisner: um sonhador nos quadrinhos traça a longa trajetória de vida, arte e trabalho desse cartunista que fez das ruas de sua Nova York um rebuscado mundo de paixões, frustrações, alegrias, medos e experiências. E também trata de um dos períodos menos conhecidos da carreira do artista, os vinte anos que desenhou e editou manuais educativos para o Exército.

Passagens:

“A cidade para mim, é um grande teatro”, dizia ele. “É uma fonte inesgotável de histórias, principalmente por causa de grande concentração de seres humanos, cuja vida tem impacto uma sobre a outra. E cada ser humano traz consigo uma história completa. É a luta pela existência.”

... Billy chegava em casa com cortes, machucados, olho roxo, ainda nervoso com a última lista de insultos que lhe haviam jogado na cara, e a única reação de seu pai era dizer que intolerância, infelizmente, era algo que fazia parte de viver numa cidade com gente tão variada. Sam explicava que os italianos e irlandeses que pegavam Billy para vítima já tinham sido, eles mesmos, vítimas de preconceito.

“... A noção mais básica do processo criativo é que a arte é a expressão do indivíduo em comunhão com as musas. Will representava algo bem mais complicado: uma forma de fazer arte colaborativa, cooperativa, a mistura de arte e comércio de maneira que um não negava nem corrompia o valor do outro.”

Tudo levava a crer que a tranquila vida suburbana da Eisner, quando longe do trabalho, fora projetada por um home que queria evitar uma reprise de sua própria infância. White Plains, a uma curta viagem de trem de Manhattan, vangloriava-se de suas ruas arborizadas, uma família em cada residência, boas escolas, e a sensação de ordem que fazia falta no tráfego apressado dos pedestres, nas buzinas dos carros e entre as luzes de neon 24 horas da cidade e o subúrbio –, ma sua esposa estava contente em fugir da cidade de sua juventude para dar uma vida mais idílica aos dois filhos. Eisner deleitava-se com a energia de Nova York, mas também estava determinado a cuidar para que seus filhos nunca passassem por nada da vida que ele conhecera crescendo nos cortiços.

Uma questão importante fez a balança pender a favor de War4ren: “Eu me sentia melhor lidando com uma editora pequena por questões práticas”, Eisner viria a explicar. “Para Jim Warren, eu era um entre quatro ativos na sua mão. Para a Marvel, eu era um entre quatrocentos. Achei que receberia mais atenção e cortesia de Jim Warren do que da Marvel.”

Sam Eisner, sonhador até o fim, faleceu em 1968, aos 82, uma década antes da publicação de Um contrato com Deus e dos elogios que se seguiram às graphic novels do filho. Sam nunca abandonou sua paixão pela arte e pintava paisagens, algumas em escala gigante, como se estivesse tentando expressar a extensão dos sonhos de que nunca desistira, mesmo em idade avançada.

“Estamos acostumados a vê-la dos arranha-céus, geralmente com uma sinfonia triste tocando de fundo, enquanto a câmera faz uma panorâmica da cidade e você vê o topo do0sprédios. Mas ninguém vê a cidade da mesma forma que eu – da forma que todos que vivem nela [veem] – com os esgotos, os hidrantes, as escadarias, as filigranas, as grades, as escadas de incêndio. É isso que a gente da cidade que vive na cidade vê todos os dias. É isso que é a cidade.”

Neil Gaiman uma vez perguntou a Will Eisner por que ele ainda trabalhava numa idade em que a maioria de seus contemporâneos havia se aposentado. Eisner pensou sobre a pergunta e respondeu citando um filme que havia assistido sobre um músico de jazz que continuava a tocar porque estava em busca “Daquela Nota” – o símbolo esquivo da perfeição, o indicador de que ele havia alcançado tudo o que poderia alcançar. Era essa busca que mantinha Eisner na ativa.