sexta-feira, 9 de agosto de 2013

A história sem fim

Ende, Michel. A história sem fim. Martins Fontes / Editorial Presença. São Paulo / SP; 1985; 392 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
Michel Ende foi um escritor alemão de romances sobre fantasia e livros infantis e parte de um movimento antroposófico (estudo do homem sob o ponto de vista moral e intelectual).
 
Dados da obra:
 
“A História Sem Fim” conta a aventura de um garoto solitário que através das páginas de um livro passa para o reino da fantasia. Nesta terra imaginária, numa busca cheia de perigos, Bastian descobre a verdadeira medida de sua própria coragem e sua capacidade para amar.
 
Passagens:
 
Bastian deu-se conta de que durante todo o tempo estivera olhando fixamente o livro que o sr. Koreander tinha nas mãos e que se encontrava agora sobre a poltrona de couro. Era como se o livro tivesse uma espécie de magnetismo que o atraía irresistivelmente.
Aproximou-se da poltrona, estendeu a mão devagar, e tocou o livro – e no mesmo instante ouviu dentro de si um “clique”, como se tivesse sido pego em uma ratoeira. Bastian teve a estranha sensação de que aquele toque desencadeara qualquer coisa que agora devia forçosamente seguir seu curso.
... Em suma, as paixões são tão diferentes quanto o são as pessoas.
A paixão de Bastian Baltasar Bux eram os livros.
 
Quem nunca passou tardes inteiras diante de um livro com as orelhas ardendo e o cabelo caído sobre o rosto, esquecido de tudo o que o rodeia e sem se dar conta de que está com fome ou com frio...
Quem nunca se escondeu embaixo dos cobertores lendo um livro à luz de uma lanterna, depois de o pai ou a mãe ou qualquer outro adulto lhe ter apagado a luz, com o argumento bem-intencionado de que já é hora de ir para a cama, pois no dia seguinte é preciso levantar cedo...
Quem nunca chorou, às escondidas ou na frente de todo mundo, lágrimas amargas porque uma história maravilhosa chegou ao fim e é preciso dizer adeus às personagens na companhia das quais se viveram tantas aventuras, que foram amadas e admiradas, pelas quais se temeu ou ansiou, e sem cuja companhia a vida parece vazia e sem sentido...
Quem não conhece tudo isto por experiência própria provavelmente não poderá compreender o que Bastian fez em seguida.
Olhou fixamente o título do livro e sentiu, ao mesmo tempo, arrepios de frio e uma sensação de calor. Ali estava uma coisa com a qual ele já havia sonhado muitas vezes, que tinha desejado muitas vezes desde que dele se apoderara aquele paixão secreta: uma história que nunca acabasse! O livro dos livros!
Tinha de o conseguir a qualquer custo!
 
“Gostaria de saber”, disse para si mesmo, “o que se passa dentro de um livro quando ele está fechado. É claro que lá dentro só há letras impressas..., mas, apesar disso, deve acontecer alguma coisa, porque quando o abro, existe ali uma história completa. Lá dentro há pessoas que ainda não conheço e toda a espécie de aventuras, feitos e combates – e muitas vezes há tempestades no mar, ou alguém vai a países e cidades exóticos. Tudo isso, de algum modo, está dentro do livro. É preciso lê-lo para o saber, é claro. Mas antes disso, já está lá dentro. Gostaria de saber como...”
 
Não gostava dos livros que, com mau humor e acidamente, narravam acontecimentos absolutamente vulgares. Conhecia muito bem tudo isso da sua vida real, por isso não precisava ler essas coisas. Além disso, detestava quando queriam convencê-lo a fazer alguma coisa. E esses livros queriam sempre convencer as pessoas de alguma coisa, de uma maneira mais ou menos óbvia. Bastian preferia os livros emocionantes, ou divertidos, ou que falavam à imaginação: livros que contavam as aventuras fabulosas de criaturas fantásticas e em que se podia imaginar tudo o que se quisesse.
 
– Você é novo, menino. Nós somos velhas. Se você fosse velho como nós, saberia que não há nada senão tristeza. Veja uma coisa. Por que não haveríamos de morrer, você, eu, a imperatriz Criança, todos, todos? Tudo é aparência, tudo é um jogo do Nada. Tudo vai dar exatamente no mesmo. Deixe-nos em paz, menino, vá embora.
 
Naquele momento, Bastian fez uma importante descoberta: podemos estar convencidos durante muito tempo – anos talvez – de que queremos alguma coisa, se soubermos que nosso desejo é irrealizável. Porém, se de súbito nos vemos diante da possibilidade de este desejo ideal se transformar em realidade, passamos a desejar apenas uma coisa: nunca tê-lo desejado.
 
Começaram a ver ao longe o castelo de Horok que se erguia em meio à Floresta das Orquídeas. Parecia efetivamente uma mão gigante, com os cinco dedos levantados e estendidos.
– Mas há uma coisa que tem de ficar bem clara, disse Bastian repentinamente. Estou decidido a não voltar ao meu mundo. Ficarei para sempre em Fantasia. Sinto-me muito bem aqui. Por isso, não me custa nada renunciar a todas as minhas recordações. E quanto ao futuro de Fantasia, não há problemas: posso dar mil novos nomes à Imperatriz Criança. Já não precisamos do mundo dos homens!
 
– Então escute, ó Grande Sábio, a nossa pergunta: o que é Fantasia?
– Fantasia é a História Sem Fim.
 
Bastian viu que, no meio do caminho, estava sentada uma mulher que tentava apanhar as ervilhas de um prato com uma agulha de costura.
– Como chegaram aqui? O que fazem?, perguntou Bastian.
– Ora, sempre tem havido seres humanos que não encontraram o caminho de volta para seu mundo explicou Argax. Primeiro não queriam e agora... digamos... já não podem.
 
Passado o perigo, todos os Iskalnari vieram outra vez para cima e recomeçaram a viagem com seu canto e sua dança, como se nada tivesse acontecido. Sua harmonia não fora perturbada, não se lamentaram. Nem se queixaram e não trocaram uma única palavra sobre o acidente.
– Não, disse um deles quando Bastian tocou no assunto. Não falta ninguém. Por que haveríamos de nos lamentar?
O indivíduo não contava para eles. E, dado que eram todos iguais, ninguém era insubstituível.

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