Jesus, Carolina Maria de. Quarto de Despejo. Ed. Ática; São Paulo / SP; 1993; 167 páginas.
Breve
relato do autor:
Carolina
Maria de Jesus foi uma escritora brasileira, nascida em Minas Gerais. Na
adolescência veio para São Paulo trabalhar, onde teve vários envolvimentos
amorosos, mas sempre se recusou a casar, por ter presenciado muitos casos de
violência doméstica. Desses relacionamentos teve três filhos, e para sobreviver
era catadora de papel. Começou a escrever um diário, contando o cotidiano dos
moradores da favela Canindé, onde morava, além de fatos políticos e sociais da
época. O diário transformou-se no livro Quarto
de Despejo, atingindo grande repercussão e tornando-a conhecida mundialmente.
Dados da
obra:
Em 1960, o
jornalista Audálio Dantas fazia uma reportagem na favela Canindé, local onde
vivia Carolina Maria de Jesus, e teria ficado encantado com o diário que ela
escrevia. Depois da reportagem, Audálio se uniu ao pessoal da redação para
publicar, em livro, o diário de Carolina, em que relata o seu dia a dia na favela
e sua vida como catadora de papel. Seu texto é considerado um dos marcos da
escrita feminina no Brasil e foi traduzido em mais de 13 de línguas. As
narrativas do diário ficam entre o ano de 1955 e 1960.
Passagens:
15 de julho de 1955
– Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de
sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização
dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par
de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.
... Ablui as
crianças, aleitei-as e ablui-me e aleitei-me...
17 de julho –
Domingo. Um dia maravilhoso. O céu azul sem nuvem. P SPC está tépido. Deixei o
leito às 6;30. Fui buscar água. Fiz café. Tendo só um pedaço de pão e 3
cruzeiros. Dei um pedaço a cada um puis feijão no fogo que ganhei ontem do
Centro Espírita da Rua Vergueiro 103. Fui lavar minhas roupas. Quando retornei
do rio o feijão estava cosido...
– Os meus filhos
estão defendendo-me. Vocês são incultas, não pode compreender. Vou escrever um
livro referente à favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês
me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradáveis me
fornece os argumentos.
Refleti: preciso ser
tolerante com os meus filhos. Eles não tem ninguém no mundo a não ser eu. Como
é pungente a condição da mulher sozinha sem um homem no lar. Aqui, todas
impricam comigo. Dizem que falo muito bem. Que sei atrair os homens (...)
Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu
escrevo. Sento no quintal e escrevo.
... Fui catar papel,
mas estava indisposta. Vim embora porque o frio era demais. Quando cheguei em
casa era 22,30. Liguei o radio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não
sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do
homem.
(1958)
10 de maio – Fui na
delegacia e falei com o tenente. Que homem amável! Se eu soubesse que ele era
tão amável, eu teria ido na delegacia na primeira intimação. (...) O tenente
interessou-se pela educação dos meus filhos. Disse-me que a favela é um
ambiente propenso, que as pessoas tem mais possibilidades de delinqui do que
tornar-se útil a pátria e ao país. Pensei: Se ele sabe disto, porque não faz um
relatório e envia para os políticos? O senhor Janio Quadro, o Kubstchek e o Dr.
Adhemar de Barros? Agora falar para mim, que sou pobre lixeira. Não posso
resolver nem minhas dificuldades.
... O Brasil precisa
ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora.
Quem passa fome
aprende apensar no próximo, e nas crianças.
... E assim no dia
13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!
... Eu classifico
São Paulo assim: O Palácio é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar
e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos.
... O que o senhor
Juscelino tem de aproveitável é a voz. Parece um sabiá e a sua voz é agradável
aos ouvidos. E agora o sabiá está residindo na gaiola de ouro que é o Catete.
Cuidado sabiá, para não perder esta gaiola, porque os gatos quando estão com
fome contempla as aves nas gaiolas. E os favelados são os gatos. Tem fome.
... Quando um
político diz nos seus discursos que está ao lado do povo, que visa incluir-se
na politica para melhorar as nossas condições de vida pedindo o nosso vogo
prometendo congelar os preços, já está ciente que abordando este grave problema
ele vence nas urnas. Depois divorcia-se do povo. Olha o povo com os olhos semi-cerrados.
Com um orgulho que fere a nossa sensibilidade.
... Quando cheguei
ao palacio que é a cidade os meus filhos vieram dizer-me que havia encontrado
macarrão no lixo. E a comida era pouca, eu fiz um pouco do macarrão com feijão.
E o meu filho João José disse-me: – Pois é. A senhora disse-me que não ia mais
comer as coisas do lixo.
Foi a primeira vez
que vi a minha palavra falhar. Eu disse:
– É que eu tinha fé
no Kubstchek.
– A senhora tinha fé
e agora não tem mais?
– Não, meu filho. A
democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz tudo está
enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos
fraquíssimos. E tudo que está fraco, morre um dia.
... Os políticos
sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo
oprimido.
Duro é o pão que nós
comemos. Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida do favelado.
... Quando eu era
menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil porque eu lia a
História do Brasil e ficava sabendo que existia guerra. Só lia os nomes
masculinos como defensor da pátria. Então eu dizia para a minha mãe:
– Porque a senhora
não faz eu virar homem?
Ela dizia:
– Se você passar por
debaixo do arco-íris você vira homem.
Quando o arco-iris
surgia eu ia correndo na sua direção. Mas o arco-iris estava sempre
distanciando. Igual os políticos distante do povo. Eu cançava e sentava. Depois
começava a chorar. Mas o povo não deve cançar. Não deve chorar. Deve lutar para
melhorar o Brasil para os nossos filhos não sofrer o que estamos sofrendo. Eu
voltava e dizia para a mamãe:
– O arco-iris foge
de mim.
... Nós somos
pobres, viemos para as margens do rio. As margens do rio são lugares do lixo e
dos marginais. Gente de favela é considerado marginais. Não mais se vê os
corvos voando as margens do rio, perto dos lixos. Os homens desempregados
substituíram os corvos.
Eu deixei o leito as
3 da manhã porque quando a gente perde o sono começa pensar nas misérias que
nos rodeia (...) Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando
que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são
de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu
contemplo as flores de todas as qualidades (...) É preciso criar este ambiente
de fantasia, para esquecer que estou na favela.
Fiz o café e fui
carregar água. Olhei o céu, a estrela Dalva já estava no céu. Como é horrível
pisar na lama.
As horas em que sou
feliz é quando estou residindo nos castelos imaginários.
O branco é que diz
que é superior. Mas que superioridade apresenta o branco? Se o negro bebe
pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o
branco sente fome, o negro também. A natureza não seleciona ninguém.
23 de junho...
Passei no açougue para comprar meio quilo de carne para bife. Os preços era 24
e 28. Fiquei nervosa com a diferença dos preços. O açougueiro explicou-me que o
filé é mais caro. Pensei na desventura da vaca, a escrava do homem. Que passa a
existência no mato, se alimenta com vegetais, gosto de sal mas o homem não dá
porque custa caro. Depois de morta é dividida. Tabelada e selecionada. E morre
quando o homem quer. Em vida dá dinheiro ao homem. E morta enriquece o homem.
Enfim, o mundo é como o branco quer. Eu não sou branca, não tenho nada com
estas desorganizações.
... Tem pessoas aqui
na favela que diz que eu quero ser muita coisa porque não bebo pinga. Eu sou
sozinha. Tenho três filhos. Se eu viciar no álcool os meus filhos não irá
respeitar-me. Escrevendo isto estou cometendo uma tolice. Eu não tenho que dar
satisfações a ninguém. Para concluir, eu não bebo porque não gosto, e
acabou-se. Eu prefiro empregar o meu dinheiro em livros do que no álcool. Se
você achar que eu estou agindo acertadamente, peço-te para dizer:
– Muito bem,
Carolina!
Quando eu vou na
cidade tenho a impressão que estou no paraizo. Acho sublime ver o aquelas
mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da favela. As casas com
seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os
olhos dos visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da
América do Sul está enferma. Com as suas úlceras. As favelas.
... Eu dormi. E tive
um sonho maravilhoso. Sonhei que eu era um anjo. Meu vestido era amplo. Mangas
longas cor de rosa. Eu ia da terra para o céu. E pegava as estrelas na mão para
contemplá-las. Conversar com as estrelas. Elas organisaram um espetáculo para
homenagear-me. Dançavam ao meu redor e formavam um risco luminoso.
Quando despertei
pensei: eu sou tão pobre. Não posso ir num espetáculo por isso. Deus envia-me
estes sonhos deslumbrantes para minh´alma dolorida. Ao Deus que me proteje,
envio os meu agradecimentos.
... O povo não sabe
revoltar-se. Deviam ir no Palacio do Ibirapuera e na Assembleia e dar uma surra
nestes políticos alinhavados que não sabem administrar o pais.
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