segunda-feira, 12 de maio de 2014

Quarto de Despejo

Jesus, Carolina Maria de. Quarto de Despejo. Ed. Ática; São Paulo / SP; 1993; 167 páginas.

Breve relato do autor:

Carolina Maria de Jesus foi uma escritora brasileira, nascida em Minas Gerais. Na adolescência veio para São Paulo trabalhar, onde teve vários envolvimentos amorosos, mas sempre se recusou a casar, por ter presenciado muitos casos de violência doméstica. Desses relacionamentos teve três filhos, e para sobreviver era catadora de papel. Começou a escrever um diário, contando o cotidiano dos moradores da favela Canindé, onde morava, além de fatos políticos e sociais da época. O diário transformou-se no livro Quarto de Despejo, atingindo grande repercussão e tornando-a conhecida mundialmente.

Dados da obra:

Em 1960, o jornalista Audálio Dantas fazia uma reportagem na favela Canindé, local onde vivia Carolina Maria de Jesus, e teria ficado encantado com o diário que ela escrevia. Depois da reportagem, Audálio se uniu ao pessoal da redação para publicar, em livro, o diário de Carolina, em que relata o seu dia a dia na favela e sua vida como catadora de papel. Seu texto é considerado um dos marcos da escrita feminina no Brasil e foi traduzido em mais de 13 de línguas. As narrativas do diário ficam entre o ano de 1955 e 1960.

Passagens:

15 de julho de 1955 – Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.

... Ablui as crianças, aleitei-as e ablui-me e aleitei-me...

17 de julho – Domingo. Um dia maravilhoso. O céu azul sem nuvem. P SPC está tépido. Deixei o leito às 6;30. Fui buscar água. Fiz café. Tendo só um pedaço de pão e 3 cruzeiros. Dei um pedaço a cada um puis feijão no fogo que ganhei ontem do Centro Espírita da Rua Vergueiro 103. Fui lavar minhas roupas. Quando retornei do rio o feijão estava cosido...

– Os meus filhos estão defendendo-me. Vocês são incultas, não pode compreender. Vou escrever um livro referente à favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradáveis me fornece os argumentos.
Refleti: preciso ser tolerante com os meus filhos. Eles não tem ninguém no mundo a não ser eu. Como é pungente a condição da mulher sozinha sem um homem no lar. Aqui, todas impricam comigo. Dizem que falo muito bem. Que sei atrair os homens (...) Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo.

... Fui catar papel, mas estava indisposta. Vim embora porque o frio era demais. Quando cheguei em casa era 22,30. Liguei o radio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem.

(1958)
10 de maio – Fui na delegacia e falei com o tenente. Que homem amável! Se eu soubesse que ele era tão amável, eu teria ido na delegacia na primeira intimação. (...) O tenente interessou-se pela educação dos meus filhos. Disse-me que a favela é um ambiente propenso, que as pessoas tem mais possibilidades de delinqui do que tornar-se útil a pátria e ao país. Pensei: Se ele sabe disto, porque não faz um relatório e envia para os políticos? O senhor Janio Quadro, o Kubstchek e o Dr. Adhemar de Barros? Agora falar para mim, que sou pobre lixeira. Não posso resolver nem minhas dificuldades.
... O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora.
Quem passa fome aprende apensar no próximo, e nas crianças.

... E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!

... Eu classifico São Paulo assim: O Palácio é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos.

... O que o senhor Juscelino tem de aproveitável é a voz. Parece um sabiá e a sua voz é agradável aos ouvidos. E agora o sabiá está residindo na gaiola de ouro que é o Catete. Cuidado sabiá, para não perder esta gaiola, porque os gatos quando estão com fome contempla as aves nas gaiolas. E os favelados são os gatos. Tem fome.

... Quando um político diz nos seus discursos que está ao lado do povo, que visa incluir-se na politica para melhorar as nossas condições de vida pedindo o nosso vogo prometendo congelar os preços, já está ciente que abordando este grave problema ele vence nas urnas. Depois divorcia-se do povo. Olha o povo com os olhos semi-cerrados. Com um orgulho que fere a nossa sensibilidade.

... Quando cheguei ao palacio que é a cidade os meus filhos vieram dizer-me que havia encontrado macarrão no lixo. E a comida era pouca, eu fiz um pouco do macarrão com feijão. E o meu filho João José disse-me: – Pois é. A senhora disse-me que não ia mais comer as coisas do lixo.
Foi a primeira vez que vi a minha palavra falhar. Eu disse:
– É que eu tinha fé no Kubstchek.
– A senhora tinha fé e agora não tem mais?
– Não, meu filho. A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E tudo que está fraco, morre um dia.
... Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido.

Duro é o pão que nós comemos. Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida do favelado.

... Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil porque eu lia a História do Brasil e ficava sabendo que existia guerra. Só lia os nomes masculinos como defensor da pátria. Então eu dizia para a minha mãe:
– Porque a senhora não faz eu virar homem?
Ela dizia:
– Se você passar por debaixo do arco-íris você vira homem.
Quando o arco-iris surgia eu ia correndo na sua direção. Mas o arco-iris estava sempre distanciando. Igual os políticos distante do povo. Eu cançava e sentava. Depois começava a chorar. Mas o povo não deve cançar. Não deve chorar. Deve lutar para melhorar o Brasil para os nossos filhos não sofrer o que estamos sofrendo. Eu voltava e dizia para a mamãe:
– O arco-iris foge de mim.
... Nós somos pobres, viemos para as margens do rio. As margens do rio são lugares do lixo e dos marginais. Gente de favela é considerado marginais. Não mais se vê os corvos voando as margens do rio, perto dos lixos. Os homens desempregados substituíram os corvos.

Eu deixei o leito as 3 da manhã porque quando a gente perde o sono começa pensar nas misérias que nos rodeia (...) Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades (...) É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela.
Fiz o café e fui carregar água. Olhei o céu, a estrela Dalva já estava no céu. Como é horrível pisar na lama.
As horas em que sou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginários.

O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o branco? Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não seleciona ninguém.

23 de junho... Passei no açougue para comprar meio quilo de carne para bife. Os preços era 24 e 28. Fiquei nervosa com a diferença dos preços. O açougueiro explicou-me que o filé é mais caro. Pensei na desventura da vaca, a escrava do homem. Que passa a existência no mato, se alimenta com vegetais, gosto de sal mas o homem não dá porque custa caro. Depois de morta é dividida. Tabelada e selecionada. E morre quando o homem quer. Em vida dá dinheiro ao homem. E morta enriquece o homem. Enfim, o mundo é como o branco quer. Eu não sou branca, não tenho nada com estas desorganizações.

... Tem pessoas aqui na favela que diz que eu quero ser muita coisa porque não bebo pinga. Eu sou sozinha. Tenho três filhos. Se eu viciar no álcool os meus filhos não irá respeitar-me. Escrevendo isto estou cometendo uma tolice. Eu não tenho que dar satisfações a ninguém. Para concluir, eu não bebo porque não gosto, e acabou-se. Eu prefiro empregar o meu dinheiro em livros do que no álcool. Se você achar que eu estou agindo acertadamente, peço-te para dizer:
– Muito bem, Carolina!

Quando eu vou na cidade tenho a impressão que estou no paraizo. Acho sublime ver o aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os olhos dos visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul está enferma. Com as suas úlceras. As favelas.

... Eu dormi. E tive um sonho maravilhoso. Sonhei que eu era um anjo. Meu vestido era amplo. Mangas longas cor de rosa. Eu ia da terra para o céu. E pegava as estrelas na mão para contemplá-las. Conversar com as estrelas. Elas organisaram um espetáculo para homenagear-me. Dançavam ao meu redor e formavam um risco luminoso.
Quando despertei pensei: eu sou tão pobre. Não posso ir num espetáculo por isso. Deus envia-me estes sonhos deslumbrantes para minh´alma dolorida. Ao Deus que me proteje, envio os meu agradecimentos.

 ... O povo não sabe revoltar-se. Deviam ir no Palacio do Ibirapuera e na Assembleia e dar uma surra nestes políticos alinhavados que não sabem administrar o pais.

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