Tezza, Cristovão. Beatriz. Record; Rio de Janeiro / RJ; 2011; 141 páginas.
Breve
relato do autor:
Cristovão Tezza é romancista e professor
universitário. Nascido em Lages, Santa Catarina, ele mudou-se para Curitiba
(PR) aos oito anos, sendo esta cidade palco de boa parte de sua literatura. É
autor de “O Filho Eterno”, livrou que ganhou inúmeros prêmios, sendo,
inclusive, eleito como o livro da década pela Revista Bravo.
Dados da
obra:
Sete histórias longas e um prólogo revelador
compõem Beatriz. Beatriz é a
personagem do romance Um erro emocional,
que acompanha agora o autor em situações originais. Em Beatriz, mergulhamos na ficção e, paralelamente, refletimos sobre
as relações entre leitor e autor, leitura e livro, o escritor e a liturgia de
seu trabalho.
Passagens:
(Prólogo)
Para não dizer que
sou um escritor sem imaginação, o que seria um exagero mortificante, diria que
sou um escritor de pouca imaginação fabular. Sempre morri de inveja dos autores
de livros policiais, dos roteiristas de novelas, dos romancistas de aventuras,
com suas sequências rocambolescas – enfim, de todos os grandes narradores que
fazem da rede mortal da verossimilhança um discreto fio de aço que não se rompe
nunca e vai nos levando naquela conversa absurda até a última página. Criança,
comecei a escrever imitando-os, desesperado por fantasia, e fui sempre
fragorosamente derrotado pelo impulso da realidade. Se dependesse da simulação
desse fio verossímil, eu estaria morto. E há um outro ponto igualmente
importante: onde a fábula é exuberante, há muitos personagens, que surgem aos
borbotões, para meu desespero e meu ciúme mesquinho.
O problema é que
escrever sempre tem consequências, você sai outra pessoa do outro lado da
narrativa. Ao mexer com a linguagem, com os truques da sintaxe, com as relações
de sentido, tudo aquilo que parece apenas um detalhe formal ou uma sacada de
humor vai como que provocando um reajuste na percepção do mundo e seus valores,
e você não consegue mais fingir que não tem nada a ver com isso. (Questão de
ordem: quando digo “você”, refiro-me apenas a mim mesmo.)
Um pai entregaria a
filha a um escritor, feliz da vida, sem saber o que a espera. Há os escritores
gentis, os grotescos, as grandes promessas, os mal-educados, os sindicalistas,
os ganhadores de concurso, os presidentes de associações, os pornógrafos, os
perdedores de concurso, os francamente ruins, os autistas, os imitadores, os
que mandam carta para a redação, os não escritores (que são diferentes dos maus
escritores) e por aí vai.
... falar é
entregar-se, escrever é ocultar-se...
“... Um apartamento,
para quem sempre viveu numa casa, com seus telhados acolhedores e o céu bem à
mão, é um espaço abstrato, frio, apenas uma ideia de moradia: habitamos um
interior sem exterior, transformados em pensamentos que sobem elevadores e
percorrem corredores, cavernas e grutas geométricas, túneis elevados onde vivem
pessoas desconhecidas e de onde súbitas janelas derramam fachos artificiais de
luz, e do alto vemos um cenário venusiano de prédios espetados...
É uma forma inadequada, ela tentou explicar enquanto
tirava o relógio do pulso, deixando-o na mesinha, sobre o livro, ou antiquada, corrigiu-se. Sem marcar hora
esta noite. Eu teria de estar de longo para que este relógio fizesse sentido, e
ela foi de novo ao espelho do quarto, e pareceu-lhe agora que a cor vermelha do
seu vestido era um pedido de socorro, o que a levou a rir – quase como alguém
que vai contar essa piada a ele, só para quebrar o gelo. Gelo: o vestido verde
era frio demais, distante demais; o branco, juvenil demais; o negro formal
demais (se ainda tivesse outro desenho, essa manga tão... não sei; o bege,
indiferente; o azul, muito... não sei, muito Cinderela.
Tenho problema com cachorros, pânico de infância, eu
devia ter avisado antes, e parecia
que a sua vida inteira era uma sequência de devias
que, se realizados, fariam dela outra pessoa, outro ser, outra existência.
O princípio de
organização dos livros é uma tarefa inesgotável e em última instância
fracassada, porque por natureza eles refugam a ordem. Há um exagero de formas,
livros de quatro centímetros de altura que pelo arbítrio da ordem alfabética
teriam de ficar colados com livros de meio metro; há nomes que são sobrenomes,
ou livros apenas com títulos; há gêneros inclassificáveis, autores que não
sabem o que escrevem, edições sem ficha catalográfica, isso é serviço de
especialista, e eu – e Beatriz quase desanimou.
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