Assis, Machado de. Esaú e Jacó. Editora Ática. São Paulo /
SP; 1977; 155 páginas.
Breve relato do autor:
Escritor brasileiro, amplamente considerado como o maior
nome da literatura nacional. Escreveu em praticamente todos os gêneros
literários, sendo poeta, romancista, cronista, dramaturgo, contista,
folhetinista, jornalista, e crítico literário. Testemunhou a mudança política
no país quando a República substituiu o Império e foi um grande comentador e
relator dos eventos político-sociais de sua época.
Dados da obra:
Inspirado nos personagens bíblicos, Esaú e Jáco, filhos
de Rebecca, Machado retoma o Conselheiro Aires, personagem poderoso que
contracena com Natividade, mãe dos gêmeos Pedro e Paulo, protagonistas deste
romance. Na trama, os iguais são opostos e concorrentes. Discordam na política,
na vida, sempre em campos opostos, um contra o outro, chegando mesmo a cortejar
a mesma mulher.
Passagens:
Mistério engendra
mistério. Havia mais de um elo íntimo, substancial, escondido, que ligava tudo.
Briga, Pedro e Paulo, irmãos gêmeos, números gêmeos, tudo eram águas de
mistério que eles agora rasgavam, nadando e bracejando com força. Santos foi
mais ao fundo; não seriam os dois meninos os próprios espíritos de São Pedro e
São Paulo, que renasciam agora, e ele, pai dos dois apóstolos?... A fé
transfigura; Santos tinha um ar quase divino, trepou em si mesmo, e os olhos
ordinariamente sem expressão, pareciam entornar a chama da vida. Pai de
apóstolos! E que apóstolos! Plácido esteve quase, quase a crer também,
achava-se dentro de um mar torvo, soturno, onde as vozes do infinito se
perdiam, mas logo lhe acudia que os espíritos de S. Pedro e S. Paulo tinham
chegado à perfeição; não tornariam cá. Não importa; seriam outros, grandes e
nobres. Os seus destinos podiam ser brilhantes; tinha razão a cabocla sem saber
o que dizia.
Este desejo de
capturar o tempo é uma necessidade da alma e dos queixos; mais ao tempo dá Deus
habeas-corpus.
Nem sempre os filhos
reproduzem os pais. Camões afirmou que de certo pai só se podia esperar tal
filho, e a Ciência confirma esta regra poética. Pela minha parte creio na
Ciência como na Poesia, mas há exceções, amigo. Sucede, às vezes, que a
natureza faz outra cousa, e nem por isso as plantas deixam de crescer e as
estrelas de luzir. O que se deve crer sem erro é que Deus é Deus; e, se alguma
rapariga árabe me estiver lendo, ponha-lhe Alá.
Todas as línguas vão dar no céu.
O olho do homem
serve de fotografia ao invisível, como o ouvido serve de eco ao silêncio.
Nenhuma dessas
cousas preocupava Natividade. Mas depressa cuidaria do baile da Ilha Fiscal que se realizou em novembro para honrar os
oficiais chilenos. Não é que ainda dançasse, mas sabia-lhe bem ver dançar os
outros, e tinha agora a opinião de que a dança é um prazer aos olhos. Esta
opinião é um dos efeitos daquele mau costume de envelhecer. Não pegues tal
costume, leitora. Há outros também ruins, nenhum pior, este é o péssimo. Deixa
lá dizerem filósofos que a velhice é um estado útil pela experiência e outras
vantagens. Não envelheças amiga minha, por mais que os anjos te convidem a
deixar a primavera; quando muito, aceita o estio. O estio é bom, cálido, as
noites são breves, é certo, mas as madrugadas não trazem neblina, e o céu
aparece logo azul. Assim dançarás sempre.
Ora, o conselheiro
tinha visto no rosto da moça a expressão de alguma coisa e insistia por ela.
Flora disse como pôde a inveja que lhe metia a vista d princesa, não para
brilhar um dia, mas para fugir ao brilho e ao mando, sempre que quisesse ficar
súdita de si mesma. Foi então que ele lhe murmurou, como acima.
– Toda alma livre é
imperatriz.
Não há mal que não
traga um pouco de bem, e por isso é que o mal é útil. Muita vez indispensável,
alguma vez delicioso.
Flora não era avessa
à piedade, nem à esperança, como sabeis; mas não ia com a agitação dos pais, e
meteu-se com o seu piano e as suas músicas. Escolhei não sei que sonata. Tanto
bastou para lhe tirar o presente. A música tinha para ela a vantagem de não ser
presente, passado ou futuro; era uma cousa fora do tempo e do espaço, uma
idealidade pura.
Pessoas do tempo,
querendo exagerar a riqueza, dizem que o dinheiro brotava do chão, mas não é
verdade. Quando muito, caía do céu. Cândido
e Cacambo... Ai, pobre Cacambo nosso! Sabes que é o nome daquele índio que o
Basílio da Gama contou no Uruguai. Voltaire
pegou dele para o meter no seu livro e a ironia do filósofo venceu a doçura do
poeta. Pobre José Basílio! Tinhas contra ti o assunto estreito e a língua
escusa. O grande homem não te arrebatou Lindóia, felizmente, mas Cacambo é
dele, mais dele que teu, patrício da minha alma.
Não há novidades nos
enterros. Aquele teve a circunstância de percorrer as ruas em estado de sítio.
Bem pensado, a morte, não é outra cousa mais que uma cessação da liberdade de
viver, cessação perpétua, ao passo que o decreto daquele dia valeu só por 72 horas. Ao cabo de 72 horas, todas as
liberdades seriam restauradas, menos a de reviver. Quem morreu, morreu. Era o
caso de Flora, mas que crime teria cometido aquela moça, além do de viver, e
porventura o de amar, não se sabe a quem, mas amar? Perdoai estas perguntas
obscuras, que não ajustam, antes se contrariam. A razão é que não recordo este
óbito sem pena, e ainda trago o enterro à vista...
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