Duras, Marguerite. O amante. O Globo – Folha de S. Paulo. São
Paulo / SP; 2003; 95 páginas.
Breve relato do autor:
Marguerite Duras, de
origem vietnamita, é uma das escritoras mais fascinantes da literatura
contemporânea francesa e internacional. Quase todas as suas obras são
autobiográficas, transpondo para a ficção a experiência pessoal, triste e, não
raras vezes, trágica, mas que atingem o esplendor artístico, através de um
estilo seguro e inconfundível.
Dados da obra:
Considerado o livro
mais autobiográfico da escritora, O
amante foi escrito em 1984. Recebeu o Prêmio
Goncourt, o mais importante da literatura francesa e se consagrou como sua
obra mais célebre. O romance narra um episódio da adolescência de Duras: sua
iniciação sexual, aos 15 anos e meio, com um chinês rico de Saigon. A vida da
família contrapõe amor e ódio, miséria material e riqueza afetiva. A presença
da mãe, sua desgraça financeira e moral, do irmão mais velho, drogado, cruel e
venal, e do irmão mais novo, frágil e oprimido, constituem uma existência
predominantemente triste.
Passagens:
Certo dia, já na
minha velhice, um homem se aproximou de mim no saguão de um lugar público.
Apresentou-se e disse: “Eu a conheço há muito, muito tempo. Todos dizem que era
bela quando jovem, vim dizer-lhe que para mim é mais bela hoje do que em sua
juventude, que eu gostava menos de seu rosto de moça do que desse de hoje,
devastado.”
... Como explicar
essa compra? Nenhuma mulher, nenhuma moça usava chapéu de feltro masculino, na
colônia, naquela época. Nem mesmo as nativas. Eis o que deve ter acontecido:
experimentei o chapéu de feltro, por brincadeira apenas, olhei-me no espelho da
loja e vi: sob o chapéu de homem, a magreza ingrata do corpo, aquele defeito da
infância, parecia outra coisa. Deixou de ser um elemento brutal, fatal, da
natureza. Transformou-se em algo oposto, uma escolha que contrariava a outra,
uma escolha intencional. Subitamente é algo desejado. Subitamente vejo-me como
outra, como outra será vista, lá fora, à disposição de todos, à disposição de
todos os olhares, lançada na circulação das cidades, das estradas, do desejo.
Seguro o chapéu, não me separo mais dele, é meu, aquele chapéu que me possui
inteira, não o largo mais.
Nunca mais eu
viajaria num ônibus de nativos. Teria agora uma limusine para levar-me ao liceu
e trazer-me de volta ao pensionato. Jantaria nos lugares mais elegantes da
cidade. E para sempre teria saudades de tudo o que fiz então, de tudo o que
abandonei, de tudo o que aceitei, o bom e o mau, o ônibus, o motorista que me
fazia rir, as velhas mascadoras de bétel dos lugares mais atrasados, as
crianças em cima do porta-bagagem, a família de Sadec, o horror da família de
Sadec, seu silêncio genial.
A pele é de uma
doçura suntuosa. O corpo. O corpo é magro, sem força, sem músculos, podia ser o
corpo de um doente, de um convalescente, ele é imberbe, sua única virilidade é
a do sexo, é muito fraco, parece estar à mercê de um insulto, parece sofrer.
Ela não olha para o rosto. Não olha. Só o toca. Toca a doçura do sexo, da pele,
acaricia a cor dourada, a novidade desconhecida. Ele geme, chora. Dormindo por
um amor abominável.
E chorando ela
realiza o ato. A princípio, a dor. E depois a dor se transforma, é arrancada
lentamente, transportada para o prazer, abraçada ao prazer. O mar, sem forma,
simplesmente incomparável.
Na rua, a multidão
movimenta-se em todas as direções, lenta ou rápida, abrindo caminho, sarnenta como
os cães abandonados, cega como os mendigos, uma multidão da China, vejo-a ainda
nas imagens da prosperidade de hoje, no modo como caminham todos juntos sem
jamais demonstrar impaciência, aquele modo de estar só no meio da multidão, sem
alegria, pode-se dizer, sem tristeza, sem curiosidade, caminhando sem parecer
ir a lugar algum, sem intenção de ir, mas apenas avançando, mudando de lugar,
isolados e no meio do povo, jamais sozinhos de verdade, sempre sozinhos no meio
da multidão.
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