Brum, Eliane. Meus desacontecimentos; Leya Editora;
São Paulo / SP; 2014; 144 páginas.
Breve relato do autor:
Eliane Brum é uma
jornalista, escritora e documentarista brasileira. Formou-se pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS) em 1988 e ganhou mais de 40
prêmios nacionais e internacionais de reportagem.
Dados da obra:
Neste livro, Eliane Brum
revela suas mais profundas memórias de infância De quantos nascimentos e mortes
se constitui uma vida? De quantos partos uma pessoa precisa para nascer? Com
quantas palavras se faz um corpo? A menina que flertava com a morte conta como
foi salva pela palavra escrita. Em cada página, personagens fantasticamente
reais incorporam-se: a irmã morta, que era a mais viva entre todos; a avó,
comedida em tudo, menos na imaginação; a família que precisou de uma perna
fantasma para andar no novo mundo; as tias que viravam flores para não murchar.
Passagens:
Desde o início o
mundo doeu em mim. Dentro, mas também fora. Alguns creem que as memórias da
primeira infância ou são boas ou não existem, temerosos de que te o mito da
infância feliz lhes escape. São os que preferem não lembrar. Eu lembro muito,
sempre lembrei. E ainda hoje há noites, muitas noites, em que acordo com o
coração descompassado. Sempre vou temer o retorno da escuridão, que para mim é
o mundo sem palavras.
... Minha mãe
procurava algo que combinasse com Cristina, porque Cristina era uma tia muito
querida que cuidou do meu pai quando ele se descobriu órfão. Assim que
encontrou uma combinação que lhe pareceu harmoniosa, uma nova novela de rádio
foi ao ar e a heroína era justamente Isabel Cristina. Minha mãe desistiu do
nome, temerosa de que nascessem Isabéis Cristinas demais no mundo, o que
demonstrava uma tentativa amorosa de me destacar na multidão. Mas eu não
entendi dessa maneira. Para mim, minha mãe me negara um nome de heroína. Das
mães, como se sabe, é preciso arrancar-se. Um parto só não basta, poderia dizer
Laura, a personagem de meu primeiro romance.
... Desde pequena,
sou capaz de permanecer horas só escutando, sem a necessidade de falar de mim
mesma. Pelas fábulas de família minha avó resgatava um pretérito que nunca
teve. Se não era possível alcançar um amanhecer mais próximo de seus suspiros,
ela compensava alinhavando seu antes com linhas bem coloridas, às vezes
extravagantes. Minha avó sabia que, para algumas vidas, é mais fácil mudar o
passado que o futuro.
Herdei essa lucidez
ou essa loucura, para mim tanto faz, e proseio com a minha avó nas tardes em
que o sol entra pela janela e penso vê-la já desencurvada de suas dores
terrenas. Quando comprei um apartamento em São Paulo, carreguei o maior número
de móveis e objetos dela que consegui resgatar para que ela pudesse se sentir
em casa. Entre eles sua cristaleira, onde acomodo as recordações de viagem,
assim como os presentes das travessias de outros. É minha tentativa de fazer
com que a alma da minha avó, que tanto ansiou por aventuras romanescas, possa
dar a volta ao mundo.
Da infância somos
todos sobreviventes.
É o contrário do que
parece ser. Antes de nos assombrar, os monstros eram humanos. Eles nos assustam
pela lembrança de sua humanidade. A monstruosidade é o que nos ajuda a
suportá-los.
Desde pequena eu
tenho muita raiva – e quase nenhuma resignação. A reportagem me deu a chance de
causar incêndios sem fogo e espernear contra as injustiças do mundo sem ir para
a cadeia. Escrevo para não morrer, mas escrevo também para não matar.
... Lembro-me ali de
quem escolhi ser. E Luzia sussurra: ser é perder-se.
Entender rápido
demais pode ser um perigo, já que todo pode significar – ou não significar
coisa alguma. O passado só existe a partir de um narrador no presente que é
tanto um decifrador quanto um criador de sentidos.
O lugar da realidade
se inverteu. A paisagem dos livros era a real. A da vida concreta era sonho. Eu
me movia por ela e fazia o que esperavam que fizesse, mas eu não estava ali.
Estava lá. Era jovem, era velha, heroína, aventureira, princesa, fada, bicho,
planta, sereia, monstro, deus. Estava nas terras altas da Escócia, no centro da
Terra, em bosques povoados por bruxas e duendes, no sítio do Pica-Pau Amarelo,
em Valhala. Eu podia escolher quem ser e onde estar. Em algumas semanas, parte
das paredes da minha nova casa velha e de Ijuí para o mundo. Em seguida, também
para outros planetas e outras dimensões. Me entreguei à experiência. Com o
coração e também com as tripas, como faria tudo na vida.
Ser contadora de
histórias reais e acolher a vida para transformá-la em narrativa da vida. É só
como história contada que podemos existir. Por isso escolhi buscar os
invisíveis, os sem-voz, os esquecidos, os proscritos, os não contados, àqueles
à margem da narrativa. Em cada um deles resgatava a mim mesma – me salvava da
morte simbólica de uma vida não escrita.
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