Kucinski, Bernardo. K. Expressão Popular, São Paulo / SP,
2011; 177 páginas.
Breve relato do autor:
Bernardo Kucinski é
um jornalista e cientista político brasileiro, e professor da Universidade de
São Paulo (USP). Ministra a cátedra de Jornalismo Internacional, entre outras.
Dados da obra:
O romance narra a
história de um pai em busca da filha que desapareceu, como tantos outros,
durante a ditadura no Brasil. A narrativa a um tempo enxuta e sensível de
Kucinski é feita de capítulos quase independentes, apresentando vários ângulos
de uma mesma história – a história da ausência e da impunidade.
Passagens:
K. tudo ouvia,
espantado. Até os nazistas, que reduziam suas vítimas a cinzas, registravam os
mortos. Cada um tinha um número, tatuado no braço. A cada morte, davam baixa
num livro. É verdade que nos primeiros dias da invasão houve chacinas e depois
também. Enfileiravam todos os judeus de uma aldeia ao lado de uma vala,
fuzilavam, jogavam cal em cima, depois terra e pronto. Mas os goim de cada
lugar sabiam que os seus judeus estavam enterrados naquele buraco, sabiam
quantos eram e quem era cada um. Não havia a agonia da incerteza. Eram
execuções em massa, não era sumidouro de pessoas.
A imagem repentina
de Guita puxou a do delegado que o expulsava do topo da escadaria de Varsóvia
aos gritos de que sua irmã nunca fora presa, de que teria fugido para Berlim,
isso sim, com algum amante.
Ainda pensava em
Guita quando chegou ao general, que o recebeu com maus modos. Mandou-o sentar
com rispidez. Reclamou que ele estava espalhando na comunidade judaica
acusações pesadas e sem fundamento contra os militares. E se sua filha fugiu
com algum amante para Buenos Aires? O senhor já pensou nisso?
Mas nada disso
explica eles se casarem às escondidas, voltava ele a raciocinar. Casamento
oculto é uma contradição, um paradoxo, pois a função do casamento é justamente
dar publicidade à formação de uma nova família à mudança no estatuto de dois
jovens. Por isso os casórios são espalhafatosos. Se não é para proclamar, não é
preciso o casamento, basta viverem juntos. Mistério.
Fiquei imaginando
que tipo de situação inspirou o Buñnel, se foi o franquismo, se foi o
catolicismo, se foi alguma coisa da vida dele, pessoal. Seja o que for é um
belo estudo sobre o que leva as pessoas a fazer o que faze, a caminhar numa
direção sem saída e não ter forças para mudar.
Antes ele insinuou
que ela não era puta, agora fala em suicídio. O que sabe ele? Não sabe de nada.
Ou ele quer dizer que ela não era uma boa judia, uma mulher justa, porque o
marido era gói? Com esse tipo de argumento negaram às polacas o direito ao sepultamento no cemitério da Vila Mariana;
elas que não eram bandidas, apenas judias pobres enganadas pela máfia – uma
história dolorosa por todos escondida –, tiveram que criar seu próprio
cemitério, lá no Chora Menino. As polacas de Santos também.
Ao deparar na
vitrine da grande avenida sua própria imagem refletida, um velho entre outros
velhos e velhas, empunhando como um estandarte a fotografia ampliada da filha,
dá-se conta estupefato, da sua transformação. Ele não é mais ele, o escritor, o
poeta, o professor de iídiche, não é mais um indivíduo, virou um símbolo, o
ícone do pai de uma desaparecida política.
Alguns anos mais e a
vida retomará uma normalidade da qual para a maioria, nunca se desviou. Velhos
morrem, crianças nascem. O pai que procurava a filha desaparecida já nada
procura, vencido pela exaustão e pela indiferença. Já não empunha o mastro com
a fotografia. Deixa de ser um ícone. Já não é mais nada. É o tronco inútil de
uma árvore seca.
E só agora percebe,
naqueles recortes de tempo e espaço, como a filha fora um ser frágil. K. nunca
imaginou que fotografias pudessem suscitar sentimentos assim fortes. Algumas
até parecem querer contar uma história. Para ele, isso só conseguiam um Pushkin
ou um Sholem Aleichem, com a força das palavras. Fotografias, ele antes
pensava, eram apenas registro de um episódio, a prova de que aquilo aconteceu,
ou retratos de pessoas, um documento. No entanto, ali estão fotografias da sua
filha sugerindo delicadeza e sensibilidade. Parecem captar a alma da filha.
Sentiu um quê de fantasmagoria nas fotografias da filha já morta, um
estremecimento.
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