Couto, Mia. Terra sonâmbula. Companhia das Letras,
São Paulo / SP, 2007; 205 páginas.
Breve relato do autor:
Mia Couto nasceu em
Moçambique. Estudou medicina antes de se formar em biologia. Atualmente
dedica-se a estudos de impacto ambiental. Em 1999, recebeu o prêmio Vergílio
Ferreira pelo conjunto da obra; em 2007, o prêmio União Latina de Literatura
Românicas.
Dados da obra:
Um ônibus incendiado
em uma estrada poeirenta serve de abrigo ao velho Tuahir e ao menino Muidinga,
em fuga da guerra civil que devastou Moçambique. O veículo está cheio de corpos
carbonizados. Mas há outro corpo à beira da estrada, junto a uma mala que
abriga os "cadernos de Kindzu", o longo diário do morto em questão. A
partir daí, duas histórias são narradas paralelamente: a viagem de Tuahir e
Muidinga, e, em flashback, o percurso
de Kindzu em busca dos naparamas, guerreiros tradicionais, abençoados pelos
feiticeiros, que são, aos olhos do garoto, a única esperança contra os senhores
da guerra.
Passagens:
... A guerra é uma
cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava
agora em todos os rios da nossa alma. De dia já não saíamos, de noite não
sonhávamos. O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos.
– Não gosto de pretos, Kindzu.
– Como? Então gosta de quem? Dos brancos?
– Também não.
– Já sei: gosta de indianos, gosta da sua raça.
– Não. Eu gosto de homens que não tem raça. É por isso
que eu gosto de si, Kindzu.
Mais uma vez
contempla a palavra escrita na estrada. Ao lado, volta a escrevinhar. Lhe vem
uma outra palavra, sem cuidar na escolha: “LUZ”. Dá um passo atrás e examina a
obra. Então, pensa: “a cor azul tem o nome certo. Porque tem as iguais letras
da palavra ‘luz’, fosse o seu feminino às avessas”.
As ideias, todos
sabemos não nascem na cabeça das pessoas. Começam num qualquer lado, são fumos
soltos, tresvairados, rodando à procura de uma devida mente.
– Há mulheres que são chuva, outras cacimbo. Essa tal
Farida deve ser uma que vale a pena a gente se despentear com ela.
– Por que me conta tudo isso, mamã Virgínia?
– Porque quero que me passes a escrever.
– Escrever?
Era. Farida deveria
enviar-lhe cartas, falseando autorias, fingindo o longe. Foi o que passou a
fazer, se entretendo a ser, de cada vez, um diferente familiar. Nunca pôde
imaginar quanta bondade estava criando. Virgínia lia as cartas com aquele
soluço que é o tropeço do choro. Farida escutava em tal embalo que se
desconhecia autora da missiva. Ou era a velha que inventava, refazendo a
irrealidade do escrito?
E afastou-se, suas
costas mirrando no escuro. Naquele momento começava a segunda orfandade de
Farida.
Por um tempo ela
ficou na Missão, num pequeno quarto cheio de sossego. Estudava, lendo o mais
que podia. Se fantasiava, enchendo o tempo. As lhe faltava o acontecer da vida,
a quentura do mundo onde nascera. Aquele lugar lhe deixava um frio interior.
Afinal, todos queremos no peito o nó de um outro peito, o devolver da metade
que perdemos ao nascer.
– Não devias ter voltado, filha.
Que a gente da
aldeia não haveria de a querer ali, ida e voltada, outrora menina da terra,
hoje mulher de visita. Se saíra, cortara os laços, não devia mostrar o golpe da
partida. Porque nela lhes doía o terem ficado. A formiga incomoda é dentro das
roupagens.
– Nasci num barco, sou filho das águas, sorri Nhamataca a fechar a estória.
E adianta lição:
nenhum rio separa, antes costura os destinos dos viventes. A prova era o seu
nascimento. Agora, ao gerar um rio, Nhamataca paga uma dívida para com um tempo
mais antigo que o passado. Talvez que um novo curso, nascido a golpes de sua
vontade, traga de volta o sonho àquela terra mal amada.
O tempo vai
esticando as pontas da corda, nos estancando pouco a pouco.
... E#u sei que em
cada mulher a gente lembra outra, a que nem há. Mas Carolinda me entregava essa
doce mentira, o impossível cálculo do amor: dois seres, um e um, somando o infinito.
Se aproximou e me acariciou os braços, ali onde as cordas me doeram. A cintura
de suas mãos me afagavam, em suave arrependimento. Aquele momento confirmava: o
melhor da vida é o que não há-de-vir.
– Tio, eu me sinto tão pequeno...
– É que você está só. Foi o que fez essa guerra: agora
todos estamos sozinhos, mortos e vivos. Agora já não há país.
– Pai, por que nunca me mostraste como eras, dentro de
ti?
– Tinha medo, filho. Não podia mostrar esse defeito e
dizer: olha este meu coração que nunca cresceu!
Os vizinhos não
variavam: a velha durava mais que a validade de seu corpo. Deixassem seu sonho
enlouquecer. E perguntavam, entre risos: o
grilo, quando nasce, já tem a toca feita? É assim a velhice. Virginha que
trocasse passado por futuro, sonhasse não com o fim da vida mas com as
nascenças que lhe faltavam.
– O que andas a fazer com um caderno, escreves o quê?
– Nem sei, pai. Escrevo conforme vou sonhando.
– E alguém vai ler isso?
– Talvez.
– É bom assim: ensinar alguém a sonhar.
– Mas pai, o que passa com esta nossa terra?
– Você não sabe, filho. Mas enquanto os homens dormem,
a terra anda procurar.
– A procurar o quê, pai?
– É que a vida não gosta sofrer: A terra anda procurar
dentro de cada pessoa, anda juntar os sonhos. Sim, faz conta ela é uma
costureira de sonhos.
... o barquinho
balouça. Aos poucos se vai tornando leve como mulher ao sabor de carícia e se
solta do colo da terra, já livre, navegável. Começa então a viagem de Tuahir
para um mar cheio de infinitas fantasias. Nas ondas estão escritas mil
estórias, dessas de embalar as crianças do inteiro mundo.
... A estrada me
descaminhou. O destino o que é senão um embriagado conduzido por um cego?
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