Na primavera de 1998, Bluma Lennon, uma professora de Cambridge, está lendo um livro de poemas de Emily Dickinson quando é atropelada. Após a sua morte, um colega e ex-amante recebe um exemplar de A linha da sombra, de Joseph Conrad, em que Bluma escrevera uma misteriosa dedicatória e que lhe era agora devolvido. Intrigado, ele parte numa busca que o leva a Buenos Aires com o objetivo de procurar pistas sobre a identidade e o destino de um obscuro, mas dedicado bibliófilo e a sua intrigante ligação com Bluma. A casa de papel é uma fábula sedutora sobre o amor desmesurado pelas bibliotecas e pela literatura.
Breve relato do autor:
Carlos María Dominguez nasceu em 1955, em Buenos Aires, na Argentina. Desde 1989 vive em Montevidéu, onde trabalha como jornalista. Publicou dois romances e uma biografia do escritor uruguaio Juan Carlos Onetti.
Passagens:
“Os livros mudam o destino das pessoas. Uns leram O tigre da Malásia e se transformaram em professores de literatura em remotas universidades. Sidarta levou milhares de jovens ao hinduísmo, Hemingway transformou-os em esportistas, Dumas transformou a vida de milhares de mulheres e não poucas foram salvas do suicídio por manuais de cozinha. Bluma foi sua vítima.
Mas não a única. O velho professor de línguas antigas Leonard Wood ficou hemiplégico ao receber na cabeça cinco tomos da Enciclopédia britânica, que se soltaram de uma prateleira de sua estante; meu amigo Richard quebrou uma perna ao tentar alcançar Absalão, Absalão!, de William Faulkner, mal localizado numa prateleira que o levou a cair da escada. Outro amigo de Buenos Aires pegou tuberculose nos porões de um arquivo público e conheci um cachorro chileno que morreu de indigestão com Os irmãos Karamázov, depois de devorar suas páginas numa tarde de fúria.”
“Todos os anos dou de presente não menos que cinquenta exemplares aos meus alunos, mas não consigo deixar de adicionar uma nova estante, outra fileira dupla; avançam pela casa, silenciosos, inocentes. Não consigo detê-los.
Perguntei-me muitas vezes por que conservo livros que só num futuro remoto poderiam auxiliar-me, títulos afastados dos percursos mais habituais, aqueles que li uma vez e não voltarão a abrir suas páginas em muitos anos. Talvez nunca! Mas como desfazer-me, por exemplo, de O chamado da selva sem apagar um dos tijolos da minha infância, o Zorba, que selou com um choro minha adolescência, A vigésima Quinta hora, e tantos outros há anos relegados às prateleiras mais altas, inteiros, sem dúvida, e mudos, na sagrada fidelidade que nós atribuímos.”
“Frequentemente, é mais difícil desfazer-se de um livro do que obtê-lo. Aderem-se a nós com um pacto de necessidade e esquecimento, tal como se fossem testemunhas de um momento de nossas vidas ao qual não regressaremos. Mas, enquanto permanecerem ali, acreditamos somá-los. Vi que muitos marcam o dia, o mês e o ano da leitura; traçam um discreto calendário. Outros escrevem seu nome na primeira página, antes de emprestá-los, anotam numa agenda o destinatário e acrescentam a data. Vi tomos carimbados, como os das bibliotecas públicas, ou com um delicado cartão do proprietário deslizado para o seu interior. Ninguém quer extraviar um livro. Preferimos perder um anel, um relógio, o guarda-chuva do que o livro cujas páginas já não leremos mas que conservam, na sonoridade de seu título, uma antiga e talvez perdida emoção.”
“– Para dizer a verdade, já não conto mais. Mas presumo que em torno de dezoito mil. Desde que me lembro, comecei a comprar um livro ou outro. A biblioteca que se forma é uma vida. Nunca, digamos, uma soma de livros soltos.
– Explique melhor essa ideia – pedi-lhe.
– O senhor os acumula nas prateleiras e parece uma soma, mas, se me permite, trata-se de uma ilusão. Seguimos certos assuntos e, ao fim de um tempo, acabamos por definir mundos; por desenhar, se prefere, o percurso de uma viagem, com a vantagem de que conservamos suas marcas...”
“Já fazia dois meses, haviam me dito, que Carlos se dava o gosto de ler os franceses do século XIX à luz de velas, para o que utilizava um candelabro de prata. Tempos atrás, havíamos conversado sobre isso, porque também eu desfruto ler Goethe enquanto uma ópera de Wagner toca no aparelho de som ou, digamos, acompanhar Baudelaire com Debussy. É parte da viagem e posso lhe assegurar que o gozo é superior, em todos os sentidos...”
“E novamente me suplicou que lhe prometesse não deixá-lo em terra. Tive firmeza suficiente para não lhe prometer nada, embora mais tarde tenha me parecido criminosa essa firmeza, pois já havia tomada uma resolução, havia dito o capitão diante do marinheiro que delirava na liteira do camarote, presa de um pânico contagioso. Parecia-me ouvir nessas suas palavras o apelo tácito que, de um modo ou de outro, o livro me havia feito desde o início.”
Carlos María Dominguez nasceu em 1955, em Buenos Aires, na Argentina. Desde 1989 vive em Montevidéu, onde trabalha como jornalista. Publicou dois romances e uma biografia do escritor uruguaio Juan Carlos Onetti.
Passagens:
“Os livros mudam o destino das pessoas. Uns leram O tigre da Malásia e se transformaram em professores de literatura em remotas universidades. Sidarta levou milhares de jovens ao hinduísmo, Hemingway transformou-os em esportistas, Dumas transformou a vida de milhares de mulheres e não poucas foram salvas do suicídio por manuais de cozinha. Bluma foi sua vítima.
Mas não a única. O velho professor de línguas antigas Leonard Wood ficou hemiplégico ao receber na cabeça cinco tomos da Enciclopédia britânica, que se soltaram de uma prateleira de sua estante; meu amigo Richard quebrou uma perna ao tentar alcançar Absalão, Absalão!, de William Faulkner, mal localizado numa prateleira que o levou a cair da escada. Outro amigo de Buenos Aires pegou tuberculose nos porões de um arquivo público e conheci um cachorro chileno que morreu de indigestão com Os irmãos Karamázov, depois de devorar suas páginas numa tarde de fúria.”
“Todos os anos dou de presente não menos que cinquenta exemplares aos meus alunos, mas não consigo deixar de adicionar uma nova estante, outra fileira dupla; avançam pela casa, silenciosos, inocentes. Não consigo detê-los.
Perguntei-me muitas vezes por que conservo livros que só num futuro remoto poderiam auxiliar-me, títulos afastados dos percursos mais habituais, aqueles que li uma vez e não voltarão a abrir suas páginas em muitos anos. Talvez nunca! Mas como desfazer-me, por exemplo, de O chamado da selva sem apagar um dos tijolos da minha infância, o Zorba, que selou com um choro minha adolescência, A vigésima Quinta hora, e tantos outros há anos relegados às prateleiras mais altas, inteiros, sem dúvida, e mudos, na sagrada fidelidade que nós atribuímos.”
“Frequentemente, é mais difícil desfazer-se de um livro do que obtê-lo. Aderem-se a nós com um pacto de necessidade e esquecimento, tal como se fossem testemunhas de um momento de nossas vidas ao qual não regressaremos. Mas, enquanto permanecerem ali, acreditamos somá-los. Vi que muitos marcam o dia, o mês e o ano da leitura; traçam um discreto calendário. Outros escrevem seu nome na primeira página, antes de emprestá-los, anotam numa agenda o destinatário e acrescentam a data. Vi tomos carimbados, como os das bibliotecas públicas, ou com um delicado cartão do proprietário deslizado para o seu interior. Ninguém quer extraviar um livro. Preferimos perder um anel, um relógio, o guarda-chuva do que o livro cujas páginas já não leremos mas que conservam, na sonoridade de seu título, uma antiga e talvez perdida emoção.”
“– Para dizer a verdade, já não conto mais. Mas presumo que em torno de dezoito mil. Desde que me lembro, comecei a comprar um livro ou outro. A biblioteca que se forma é uma vida. Nunca, digamos, uma soma de livros soltos.
– Explique melhor essa ideia – pedi-lhe.
– O senhor os acumula nas prateleiras e parece uma soma, mas, se me permite, trata-se de uma ilusão. Seguimos certos assuntos e, ao fim de um tempo, acabamos por definir mundos; por desenhar, se prefere, o percurso de uma viagem, com a vantagem de que conservamos suas marcas...”
“Já fazia dois meses, haviam me dito, que Carlos se dava o gosto de ler os franceses do século XIX à luz de velas, para o que utilizava um candelabro de prata. Tempos atrás, havíamos conversado sobre isso, porque também eu desfruto ler Goethe enquanto uma ópera de Wagner toca no aparelho de som ou, digamos, acompanhar Baudelaire com Debussy. É parte da viagem e posso lhe assegurar que o gozo é superior, em todos os sentidos...”
“E novamente me suplicou que lhe prometesse não deixá-lo em terra. Tive firmeza suficiente para não lhe prometer nada, embora mais tarde tenha me parecido criminosa essa firmeza, pois já havia tomada uma resolução, havia dito o capitão diante do marinheiro que delirava na liteira do camarote, presa de um pânico contagioso. Parecia-me ouvir nessas suas palavras o apelo tácito que, de um modo ou de outro, o livro me havia feito desde o início.”
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