Dados da obra:
Registros e bastidores de viagem por Zeca Camargo, revelando aquilo que o telespectador não viu na televisão. Foram quatro meses longe de casa, mais de 100 mil quilômetros percorridos em 54 trajetos de avião. Dezessete exuberantes países visitados ao redor do planeta. Da concepção do projeto aos obstáculos práticos para a produção, o autor conta a história (e as histórias) de sua experiência de jornalismo itinerante as grandes surpresas, os personagens mais marcantes, as impressões de um brasileiro ao conhecer lugares e culturas tão diferentes.
Breve relato do autor:
Zeca Camargo (nome de batismo: José Carlos Brito de Ávila Camargo) é apresentador e jornalista. Editor-chefe e apresentador do Fantástico, da Rede Globo.
Passagens:
“Chegar a um dos lugares mais lindos do mundo tem um preço. No nosso caso, aterrissar na Nova Zelândia nos custou um dia. Um dia mesmo, desses de calendário. É até estranho falar, mas, depois dessa viagem, vai ficar faltando, para sempre, um dia na minha vida.
Nada de dramas... Mas eu queria deixar claro que saí de Honolulu às 23h55 do dia 31 de maio, peguei no sono, voei por nove horas e acordei em Auckland, Nova Zelândia, às 7h15 da manhã DO DIA 02 DE JUNHO!! Esse é um assunto que eu adoro, mas é meio complicado de entender. A noção da linha do tempo parece às vezes abstrata demais para o nosso pensamento.
Também não é muito simples explicar, mas vamos tentar.
Cruzamos a linha do tempo, certo? Ela fica bem no oceano Pacífico, escolhida arbitrariamente, talvez por ser uma faixa do planeta que não atravessa muitas porções de terra – vai saber! Enfim, não importa se é dia ou noite, cruzou a linha, você muda de dia. A oeste dessa linha é amanhã; a leste, é ontem. E “hoje” é sempre o lado onde você está. Confuso? Então recomendo a leitura do genial A ilha do dia anterior, de Umberto Eco.”
(sobre cangurus)
“Felizmente, eles logo se mostraram carinhosos. De perto, aquelas coisas fofinhas eram até meio... bem feias. Ou melhor, esquisitas. Experimente ficar olhando para um bicho desses sem se comover. Ele é totalmente desproporcional: um focinho comprido, um olho grande demais, um rabo que mais parece um contrapeso, patas dianteiras que lembram garras – e aquela bolsa! As coisas parecem que não se encaixam. Mas o que estou fazendo aqui, na verdade, é disfarçando o fato de que me apaixonei pelo bicho”.
“Um exemplo é Bayon, para pegar um dos mais famosos e mais visitados templos do complexo de Angkor. Suas torres de pedra, cada uma com quatro faces de um Buda sorridente olhando para os pontos cardeais, são a coisa mais próxima de um jogo de espelhos – sem usar sequer um reflexo de vidro. Todos os rostos com a mesma serenidade, sem sequer esbarrar na monotonia. Você se fixa em um e imediatamente sua atenção é roubada por outro. É como se alguém estivesse jogando fliperama com seus olhos. São inúmeras possibilidades de você ficar cara a cara com o Buda, e, não importa quanto tempo você fique passeando nessas torres, a sensação é a de que ficou faltando ver alguma parte delas.” (Camboja)
“...Quer dizer, eu já tinha aprendido a me apaixonar por Bangcoc. Assim como em Angkor eu desejava ter mil olhos, esse é o lugar onde eu gostaria de ter mil narizes! Para um país que nem estava no nosso roteiro oficial, peço licença aqui para uma breve declaração de amor a uma cidade.
Não conheço outro lugar onde você pode ter um banquete olfativo que salta do cheiro de fritura para o de jasmim, depois de fumaça, em seguida goiaba, suor, perfume de grife falsificado, peixe, sabão em pó, lichia, fruta podre, sabonete barato, água parada, manga, cachorro molhado, jasmim de novo e mais uns dois ou três aromas que seu nariz tem trabalho pra reconhecer – e tudo no mesmo quarteirão!”
“Tashkent correspondeu ao que eu mais ou menos imaginava de uma cidade soviética pós-URSS. Uma vastidão oca, aquela arquitetura monumental, salpicada com pessoas tristes nas calçadas – que pareciam ainda mais tristes por serem tão bonitas. Entre todos os tipos étnicos que encontramos nessa volta ao mundo, o uzbeque foi um dos mais interessantes, Traços mongóis, olhos claros, cabelos escuros, um porte alto – tudo ajudava a formar rostos que eu não tinha encontrado em nenhum outro lugar. A natureza era ainda mais generosa com os homens, uma vez que as mulheres, maltratadas talvez pelo modo de vida, passavam por um estranho processo de envelhecimento, que as faziam saltar dos quinze para os 55 anos sem transição. E mesmo assim elas irradiavam beleza estranha.”
“Para sempre Lilya...
É devastador. Em brevíssimas linhas, é a história de uma adolescente abandonada pela mãe numa pequena cidade do interior da Rússia. A mãe vai para os Estados Unidos com um cara que arrumou numa agência de casamentos, promete que vai voltar para buscar a filha – e não dá mais notícias. Lilya amarga durante semanas (talvez meses) a miséria do local onde vive, até cair no conto de um namorado que quer levá-la para a Suécia – um golpe para que ela se transforme numa espécie de escrava (sexual) em outra cidade do interior, agora sueco. É muito triste. Muito triste. E lá estava eu passeando em Tashkent, me lembrando disso.
Eu adorei o Uzbequistão. Sério... Mas tem alguma coisa, alguma coisa que não sei definir, que está nas pessoas que você encontra na calçada, que está nas janelas que revelam vultos quando você passa, até nas portas do metrô que, num movimento fantasmagórico, abrem e fecham sozinhas com o vento do trem que passa lá embaixo – tem alguma coisa que me fez lembrar esse filme.
O mundo – é duro reconhecer – é feito também de um monte de lugares tristes.”
“Há algum tempo já vinha reparando num fenômeno engraçado que acontecia com relação aos meus registros e lembranças. A velocidade com que as coisas iam se sucedendo acabava comprimindo tudo na memória. Situações vividas há um bom tempo, lá no início, acabavam voltando como novas. Às vezes eu perdia a certeza do país onde determinado fato tinha acontecido (era fácil saber onde ficava o palácio do marajá; mas em que cidade mesmo foi que aquele motorista de táxi se recusou a nos dar troco?). Mesmo agora, a reconstrução da cronologia dos fatos é tarefa difícil. Imagino, novamente, que a rapidez dos eventos – e a falta de tempo para digeri-los – seja a grande responsável por isso. Era uma sensação desconfortável, sim, ainda mais levando-se em conta que teríamos umas boas semanas pela frente. Mas era algo impossível de contornar.”
Registros e bastidores de viagem por Zeca Camargo, revelando aquilo que o telespectador não viu na televisão. Foram quatro meses longe de casa, mais de 100 mil quilômetros percorridos em 54 trajetos de avião. Dezessete exuberantes países visitados ao redor do planeta. Da concepção do projeto aos obstáculos práticos para a produção, o autor conta a história (e as histórias) de sua experiência de jornalismo itinerante as grandes surpresas, os personagens mais marcantes, as impressões de um brasileiro ao conhecer lugares e culturas tão diferentes.
Breve relato do autor:
Zeca Camargo (nome de batismo: José Carlos Brito de Ávila Camargo) é apresentador e jornalista. Editor-chefe e apresentador do Fantástico, da Rede Globo.
Passagens:
“Chegar a um dos lugares mais lindos do mundo tem um preço. No nosso caso, aterrissar na Nova Zelândia nos custou um dia. Um dia mesmo, desses de calendário. É até estranho falar, mas, depois dessa viagem, vai ficar faltando, para sempre, um dia na minha vida.
Nada de dramas... Mas eu queria deixar claro que saí de Honolulu às 23h55 do dia 31 de maio, peguei no sono, voei por nove horas e acordei em Auckland, Nova Zelândia, às 7h15 da manhã DO DIA 02 DE JUNHO!! Esse é um assunto que eu adoro, mas é meio complicado de entender. A noção da linha do tempo parece às vezes abstrata demais para o nosso pensamento.
Também não é muito simples explicar, mas vamos tentar.
Cruzamos a linha do tempo, certo? Ela fica bem no oceano Pacífico, escolhida arbitrariamente, talvez por ser uma faixa do planeta que não atravessa muitas porções de terra – vai saber! Enfim, não importa se é dia ou noite, cruzou a linha, você muda de dia. A oeste dessa linha é amanhã; a leste, é ontem. E “hoje” é sempre o lado onde você está. Confuso? Então recomendo a leitura do genial A ilha do dia anterior, de Umberto Eco.”
(sobre cangurus)
“Felizmente, eles logo se mostraram carinhosos. De perto, aquelas coisas fofinhas eram até meio... bem feias. Ou melhor, esquisitas. Experimente ficar olhando para um bicho desses sem se comover. Ele é totalmente desproporcional: um focinho comprido, um olho grande demais, um rabo que mais parece um contrapeso, patas dianteiras que lembram garras – e aquela bolsa! As coisas parecem que não se encaixam. Mas o que estou fazendo aqui, na verdade, é disfarçando o fato de que me apaixonei pelo bicho”.
“Um exemplo é Bayon, para pegar um dos mais famosos e mais visitados templos do complexo de Angkor. Suas torres de pedra, cada uma com quatro faces de um Buda sorridente olhando para os pontos cardeais, são a coisa mais próxima de um jogo de espelhos – sem usar sequer um reflexo de vidro. Todos os rostos com a mesma serenidade, sem sequer esbarrar na monotonia. Você se fixa em um e imediatamente sua atenção é roubada por outro. É como se alguém estivesse jogando fliperama com seus olhos. São inúmeras possibilidades de você ficar cara a cara com o Buda, e, não importa quanto tempo você fique passeando nessas torres, a sensação é a de que ficou faltando ver alguma parte delas.” (Camboja)
“...Quer dizer, eu já tinha aprendido a me apaixonar por Bangcoc. Assim como em Angkor eu desejava ter mil olhos, esse é o lugar onde eu gostaria de ter mil narizes! Para um país que nem estava no nosso roteiro oficial, peço licença aqui para uma breve declaração de amor a uma cidade.
Não conheço outro lugar onde você pode ter um banquete olfativo que salta do cheiro de fritura para o de jasmim, depois de fumaça, em seguida goiaba, suor, perfume de grife falsificado, peixe, sabão em pó, lichia, fruta podre, sabonete barato, água parada, manga, cachorro molhado, jasmim de novo e mais uns dois ou três aromas que seu nariz tem trabalho pra reconhecer – e tudo no mesmo quarteirão!”
“Tashkent correspondeu ao que eu mais ou menos imaginava de uma cidade soviética pós-URSS. Uma vastidão oca, aquela arquitetura monumental, salpicada com pessoas tristes nas calçadas – que pareciam ainda mais tristes por serem tão bonitas. Entre todos os tipos étnicos que encontramos nessa volta ao mundo, o uzbeque foi um dos mais interessantes, Traços mongóis, olhos claros, cabelos escuros, um porte alto – tudo ajudava a formar rostos que eu não tinha encontrado em nenhum outro lugar. A natureza era ainda mais generosa com os homens, uma vez que as mulheres, maltratadas talvez pelo modo de vida, passavam por um estranho processo de envelhecimento, que as faziam saltar dos quinze para os 55 anos sem transição. E mesmo assim elas irradiavam beleza estranha.”
“Para sempre Lilya...
É devastador. Em brevíssimas linhas, é a história de uma adolescente abandonada pela mãe numa pequena cidade do interior da Rússia. A mãe vai para os Estados Unidos com um cara que arrumou numa agência de casamentos, promete que vai voltar para buscar a filha – e não dá mais notícias. Lilya amarga durante semanas (talvez meses) a miséria do local onde vive, até cair no conto de um namorado que quer levá-la para a Suécia – um golpe para que ela se transforme numa espécie de escrava (sexual) em outra cidade do interior, agora sueco. É muito triste. Muito triste. E lá estava eu passeando em Tashkent, me lembrando disso.
Eu adorei o Uzbequistão. Sério... Mas tem alguma coisa, alguma coisa que não sei definir, que está nas pessoas que você encontra na calçada, que está nas janelas que revelam vultos quando você passa, até nas portas do metrô que, num movimento fantasmagórico, abrem e fecham sozinhas com o vento do trem que passa lá embaixo – tem alguma coisa que me fez lembrar esse filme.
O mundo – é duro reconhecer – é feito também de um monte de lugares tristes.”
“Há algum tempo já vinha reparando num fenômeno engraçado que acontecia com relação aos meus registros e lembranças. A velocidade com que as coisas iam se sucedendo acabava comprimindo tudo na memória. Situações vividas há um bom tempo, lá no início, acabavam voltando como novas. Às vezes eu perdia a certeza do país onde determinado fato tinha acontecido (era fácil saber onde ficava o palácio do marajá; mas em que cidade mesmo foi que aquele motorista de táxi se recusou a nos dar troco?). Mesmo agora, a reconstrução da cronologia dos fatos é tarefa difícil. Imagino, novamente, que a rapidez dos eventos – e a falta de tempo para digeri-los – seja a grande responsável por isso. Era uma sensação desconfortável, sim, ainda mais levando-se em conta que teríamos umas boas semanas pela frente. Mas era algo impossível de contornar.”
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