Breve
relato do autor:
Jorge Amado foi um dos mais famosos
e traduzidos escritores brasileiros. Suas obras tiveram inúmeras adaptações para
cinema, teatro e televisão e foram traduzidas em 55 países, em 49 idiomas,
existindo também exemplares em Braille e em fitas gravadas para cegos. Em 1994
sua obra foi reconhecida com o Prêmio Camões.
Passagens:
João José, o Professor, desde o dia
em que furtara um livro de histórias numa estante de uma casa da Barra, se
tornara perito nestes furtos. Nunca, porém, vendia os livros, que ia empilhando
num canto do trapiche, sob tijolos, para que os ratos não os roessem. Lia-os
todos numa ânsia que era quase febre. Gostava de saber coisas e era ele quem,
muitas noites, contava aos outros histórias de aventureiros, de homens do mar,
de personagens heroicos e lendários, histórias que faziam aqueles olhos vivos
se espicharem para o mar ou para as misteriosas ladeiras da cidade, numa ânsia
de aventuras e heroísmo. João José era o único que lia correntemente entre eles
e, no entanto, só estivera na escola ano e meio.
Então a luz da lua se estendeu sobre
todos, as estrelas brilharam ainda mais no céu, o mar ficou de todo manso
(talvez que Iemanjá tivesse vindo também ouvir a música) e a cidade era como
que um grande carrossel onde giravam em invisíveis cavalos os Capitães da
Areia. Neste momento de música eles sentiram-se donos da cidade. E amaram-se
uns aos outros, se sentiram irmãos porque eram todos eles sem carinho e sem
conforto e agora tinham o carinho e o conforto da música. Volta Seca não
pensava com certeza em Lampião neste momento. Pedro Bala não pensava em ser um
dia o chefe de todos os malandros da cidade. O Sem-Pernas em se jogar no mar
onde os sonhos são todos belos. Porque a música saía do bojo do velho carrossel
só para eles e para o operário que parara. E era uma valsa velha e triste, já
esquecida por todos os homens da cidade.
E nunca nenhum a havia traído do
modo como o Sem-Pernas a ia trair. Para virar menino mimado, para virar uma
daquelas crianças que eram eterno motivo de galhofa para eles. Não, não os
trairia. Teriam bastado três dias para ele localizar os objetos de valor da
casa. Mas a comida, a roupa e o quarto, o carinho de dona Ester tinham feito
que ele passasse já oito dias. Tinha sido comprado por este carinho como o
estivador fora comprado por dinheiro. Não, não tairia. Mas aí pensou se não ia
trair dona Ester. Ela confiara nele. Ela também na sua casa tinha uma lei como
os Capitães da Areia: só castigava quando havia erro, pagava o bem com o bem. O
Sem-Pernas ia trair essa lei, ia pagar o bem com o mal. Lembrou-ser que das
outras vezes, quando dava o fora de uma casa para ela ser assaltada, era uma
grande alegria que o invadia. Desta vez não tinha alegria nenhuma.
Na tarde em que se foi, mirou a casa
toda, acariciou o gato Berloque, conversou com a criada, olhou os livros de
gravura. Depois foi ao quarto de dona Ester, disse que ia até o Campo Grande
passear. Ela então contou que Raul traria um bicicleta do Rio para ele e então
todas as tardes ele andaria nela pelo Campo Grande, em vez de passear a pé. O
Sem-Pernas baixou os olhos, mas antes de sair veio até dona Ester e a beijou.
Era a primeira vez que a beijava e ela ficou muito alegre. Ele disse baixinho,
arrancando as palavras de dentro de si:
– A senhora é muito boa. Eu nunca
vou esquecer.
A mão dela (unhas maltratadas e
sujas, roídas a dente) não queria excitar, nem arrepiar. Passava como a mão de
uma mãe que remendava camisas dos filhos. A mãe do Gato morrera cedo. Era uma
mulher frágil e bonita. Também tinha as mãos maltratadas, que esposa de
operário não tem manicura. E era dela também aquele gesto de remendar as
camisas de Gato, mesmo nas costas de Gato. A mão de Dora o toca de novo. Agora
a sensação é diferente. Não é mais um arrepio de desejo. É aquela sensação de carinho
bom, de segurança que lhe davam as mãos de sua mãe. Dora está por detrás dele,
ele não vê. Imagina então que é sua mãe que voltou. Gato está pequenino de
novo, vestido com um camisolão de bulgariana e nas brincadeiras pelas ladeiras
do morro o rompe todo. E sua mãe vem, faz com que ele se sente na sua frente e
suas mãos ágeis manejam a agulha, de quando em vez o tocam e lhe dão aquela
sensação de felicidade absoluta. Nenhum desejo. Somente felicidade. Ela voltou,
remenda as camisas do Gato. Uma vontade de deitar no colo de Dora e deixar que
ela cante para ele dormir, como quando era pequenino. Se recorda que ainda é um
criança. Mas só na idade, porque no mais é igual a um homem, furtando para
viver, dormindo todas as noites com uma mulher da vida, tomando dinheiro dela.
Mas nesta noite é totalmente criança...
Professor apertou os olhos e viu
também, em lugar de Dora, uma sertaneja forte, defendendo seu pedaço de terra
contra os coronéis, com a ajuda amiga dos cangaceiros. Viu a mãe de Volta Seca.
E era o que o mulato via. Os cabelos loiros eram carapinha rala, os olhos doces
eram os olhos achinesados da sertaneja, o rosto grave era o rosto sombrio da
camponesa explorada. E o sorriso era o mesmo sorriso de orgulho da mãe para filho.