sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Capitães da Areia


Amado, Jorge. Capitães da Areia. Companhia das Letras; São Paulo / SP; 2008; 275 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
Jorge Amado foi um dos mais famosos e traduzidos escritores brasileiros. Suas obras tiveram inúmeras adaptações para cinema, teatro e televisão e foram traduzidas em 55 países, em 49 idiomas, existindo também exemplares em Braille e em fitas gravadas para cegos. Em 1994 sua obra foi reconhecida com o Prêmio Camões.

 Dados da obra:

 Publicado em 1937, o livro retrata a vida de um grupo de menores abandonados, chamados de “Capitães da Areia”, ambientado na cidade de Salvador dos anos de 1930.
 
Passagens:
 
João José, o Professor, desde o dia em que furtara um livro de histórias numa estante de uma casa da Barra, se tornara perito nestes furtos. Nunca, porém, vendia os livros, que ia empilhando num canto do trapiche, sob tijolos, para que os ratos não os roessem. Lia-os todos numa ânsia que era quase febre. Gostava de saber coisas e era ele quem, muitas noites, contava aos outros histórias de aventureiros, de homens do mar, de personagens heroicos e lendários, histórias que faziam aqueles olhos vivos se espicharem para o mar ou para as misteriosas ladeiras da cidade, numa ânsia de aventuras e heroísmo. João José era o único que lia correntemente entre eles e, no entanto, só estivera na escola ano e meio.

Então a luz da lua se estendeu sobre todos, as estrelas brilharam ainda mais no céu, o mar ficou de todo manso (talvez que Iemanjá tivesse vindo também ouvir a música) e a cidade era como que um grande carrossel onde giravam em invisíveis cavalos os Capitães da Areia. Neste momento de música eles sentiram-se donos da cidade. E amaram-se uns aos outros, se sentiram irmãos porque eram todos eles sem carinho e sem conforto e agora tinham o carinho e o conforto da música. Volta Seca não pensava com certeza em Lampião neste momento. Pedro Bala não pensava em ser um dia o chefe de todos os malandros da cidade. O Sem-Pernas em se jogar no mar onde os sonhos são todos belos. Porque a música saía do bojo do velho carrossel só para eles e para o operário que parara. E era uma valsa velha e triste, já esquecida por todos os homens da cidade.
 
E nunca nenhum a havia traído do modo como o Sem-Pernas a ia trair. Para virar menino mimado, para virar uma daquelas crianças que eram eterno motivo de galhofa para eles. Não, não os trairia. Teriam bastado três dias para ele localizar os objetos de valor da casa. Mas a comida, a roupa e o quarto, o carinho de dona Ester tinham feito que ele passasse já oito dias. Tinha sido comprado por este carinho como o estivador fora comprado por dinheiro. Não, não tairia. Mas aí pensou se não ia trair dona Ester. Ela confiara nele. Ela também na sua casa tinha uma lei como os Capitães da Areia: só castigava quando havia erro, pagava o bem com o bem. O Sem-Pernas ia trair essa lei, ia pagar o bem com o mal. Lembrou-ser que das outras vezes, quando dava o fora de uma casa para ela ser assaltada, era uma grande alegria que o invadia. Desta vez não tinha alegria nenhuma.

Na tarde em que se foi, mirou a casa toda, acariciou o gato Berloque, conversou com a criada, olhou os livros de gravura. Depois foi ao quarto de dona Ester, disse que ia até o Campo Grande passear. Ela então contou que Raul traria um bicicleta do Rio para ele e então todas as tardes ele andaria nela pelo Campo Grande, em vez de passear a pé. O Sem-Pernas baixou os olhos, mas antes de sair veio até dona Ester e a beijou. Era a primeira vez que a beijava e ela ficou muito alegre. Ele disse baixinho, arrancando as palavras de dentro de si:
– A senhora é muito boa. Eu nunca vou esquecer.

A mão dela (unhas maltratadas e sujas, roídas a dente) não queria excitar, nem arrepiar. Passava como a mão de uma mãe que remendava camisas dos filhos. A mãe do Gato morrera cedo. Era uma mulher frágil e bonita. Também tinha as mãos maltratadas, que esposa de operário não tem manicura. E era dela também aquele gesto de remendar as camisas de Gato, mesmo nas costas de Gato. A mão de Dora o toca de novo. Agora a sensação é diferente. Não é mais um arrepio de desejo. É aquela sensação de carinho bom, de segurança que lhe davam as mãos de sua mãe. Dora está por detrás dele, ele não vê. Imagina então que é sua mãe que voltou. Gato está pequenino de novo, vestido com um camisolão de bulgariana e nas brincadeiras pelas ladeiras do morro o rompe todo. E sua mãe vem, faz com que ele se sente na sua frente e suas mãos ágeis manejam a agulha, de quando em vez o tocam e lhe dão aquela sensação de felicidade absoluta. Nenhum desejo. Somente felicidade. Ela voltou, remenda as camisas do Gato. Uma vontade de deitar no colo de Dora e deixar que ela cante para ele dormir, como quando era pequenino. Se recorda que ainda é um criança. Mas só na idade, porque no mais é igual a um homem, furtando para viver, dormindo todas as noites com uma mulher da vida, tomando dinheiro dela. Mas nesta noite é totalmente criança...
 
Professor apertou os olhos e viu também, em lugar de Dora, uma sertaneja forte, defendendo seu pedaço de terra contra os coronéis, com a ajuda amiga dos cangaceiros. Viu a mãe de Volta Seca. E era o que o mulato via. Os cabelos loiros eram carapinha rala, os olhos doces eram os olhos achinesados da sertaneja, o rosto grave era o rosto sombrio da camponesa explorada. E o sorriso era o mesmo sorriso de orgulho da mãe para filho.