Breve
relato do autor:
Hernán Rivera Letelier é um escritor
chileno que se tornou conhecido com o romance “A rainha Isabel cantava
rancheras”. Em 2001 foi nomeado Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras pelo
Ministério da Cultura de França.
Dados
da obra:
Trata-se da história de uma família
apaixonada por cinema. Quando o pai sofre um acidente de trabalho e a renda se
reduz pela metade, apenas um dos filhos pode ir ao cinema no domingo. E este
tem de contar o enredo para toda a família. Nessa tarefa, a filha mais nova,
Maria Margarita, se sai melhor.
Passagens:
Eu ficava fascinada com o vazio da
sala de cinema na penumbra; parecia uma espécie de caverna misteriosa, secreta,
sempre inexplorada. Ao atravessar as pesadas cortinas de veludo me dava a
sensação de passar da crueza do mundo real a um maravilhoso mundo mágico.
Nós nos sentávamos na primeira fila,
quase grudados naquela enorme telona branca que para mim era como o altar-mor
de uma igreja. O auge daquele ritual todo acontecia no maravilhoso instante em
que as luzes se apagavam, as cortinas da entrada eram fechadas, a música silenciava
e a tela se enchia de vida e de movimento.
Cheguei em casa com os olhos
vermelhos. Todos me esperavam com grande expectativa. Tomei em silêncio uma
xícara de chá, me pus na frente deles, e sem que meus joelhos tremessem nem
nada, comecei a minha narração.
Foi então que alguma coisa se
apoderou de mim. Enquanto contava o filme – gesticulando, dando braçadas,
mudando a voz – ia como que me desdobrando, transformando, convertendo-me em
cada um dos personagens. Naquela tarde fui Ben-Hur, o jovenzinho. Fui Messala,
o malvado do filme. Fui as duas mulheres leprosas que Jesus curou.
Fui o mesmíssimo Jesus.
Eu não estava contando o filme, eu
estava atuando o filme. Mais ainda: eu estava vivendo o filme. Meu pai e meus
irmãos me ouviam e olhavam para mim de boca aberta.
Uma vez li uma frase – com certeza
de algum autor famoso – que dizia algo assim como a vida está feita da mesma
matéria dos sonhos. Eu digo que a vida pode perfeitamente estar feita da mesma
matéria dos filmes.
Contar um filme é como contar um
sonho.
Contar a vida é como contar um sonho
ou contar um filme.
Sem ter pensado nisso, para eles eu
tinha me transformado num fazedora de ilusões. Numa espécie de fada, como dizia
a vizinha. Minhas narrações de filmes os tiravam daquele amargo nada que era o
deserto, e mesmo que fosse por um instante os transportava a mundos
maravilhosos, cheios de amores, sonhos e aventuras. Em vez de vê-los projetados
numa tela, em minhas narrações cada um podia imaginar esses mundos ao seu bel
prazer.
Eu olhava as pessoas emboladas na
frente do aparelho – muitas delas assíduas de minhas narrações – e via como
seus olhinhos brilhavam naqueles segundos em eu imagem e som coincidiam.
Brilhavam como quando na minha casa, mostrando a máscara de Zorro, eu dava uma
cambalhota com a espada e com três talhos certeiros deixava o Z claramente desenhado
no ar.
Embora no deserto o sol jorre quase
todos os dias do ano, aquela era uma dessas raras manhãs nubladas. Naquela
altura eu já tinha claro que as coisas ruins me aconteciam em dias nublados. Se
fosse verdade que “as aranhas só tecem em dias nublados”, como dizia meu pai
que sua avó repetia sempre, minha má sorte viria a ser uma espécie de aranha
das mais laboriosas.