Breve
relato do autor:
Bartolomeu
Campos de Queirós foi um escritor brasileiro, morto em janeiro de 2012. Teve mais
de 40 livros publicados, sendo que Vermelho
Amargo ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura 2012 (in memorian). Idealizou o Movimento
por um Brasil Literário, do qual participava ativamente.
Dados
da obra:
Vermelho Amargo, primeiro livro do autor para o público jovem e adulto, é narrado pelo prisma de uma criança. Em prosa poética autobiográfica, Bartolomeu revisita a dolorosa infância, marcada pela ausência da mãe substituída por uma madrasta indiferente.
Passagens:
No princípio, se um de nós caía, a dor doía ligeiro. Um beijo seu curava a cabeça batida na terra, o dedo espremido na dobradiça da porta, o pé tropeçado no egrau da escada, o braço torcido no galho da árvore. Seu beijo de mãe era um santo remédio. Ao machucar, pedia-se: mãe, beija aqui!
É preciso muito bem esquecer para
experimentar a alegria de novamente lembrar-se. Tantos pedaços de nós dormem
num canto da memória, que a memória chega a esquecer-se deles. E a palavra –
basta uma só palavra – é flecha para sangrar o abstrato morto. Há, contudo,
dores que a palavra não esgota ao dizê-las.
“Passarinho não canta, passarinho
lastima”– minha irmã repetia. “Diante da demasiada liberdade seu canto vira
pranto” – ela teimava. “Liberdade, quando abusiva, mais amedronta” – ela
completava. “Ter um céu inteiro por caminho espanta até as asas. Todo pássaro
fez um desnorteio ao voar” – ela anunciava. O medo interrompe a liberdade,
mesmo no coração dos pássaros. A irmã carregava os olhos secos, as mãos cruzadas
sobre o coração e raramente se debruçava na janela. As pedras mais antigas, que
engravidam a terra, invejariam seu deserto.
Brincar irritava a ira de nosso pai.
“Viver demanda muita seriedade”, ele retrucava. Só contar estrelas permitia,
por ser uma lida sem fim. Os filhos se assentavam no degrau da escada, em fila.
Rendiam-se à primeira estrela e rezavam: “Primeira estrela que eu vejo me dê
tudo que eu desejo”. Naquela tarde, eu vi primeiro. Orei à luz para não deixar
meu amor quebrar-se, nunca mais. O adeus da mãe, tenro, invocou-me a subtrair
de mim a crença no absoluto. Estrela, não quero espinho – insistia aturdido.
Minha irmã maior gostava de agulhas.
Meu primeiro irmão mastigava vidro. Uma brisa morna morava na ponta dos dedos
da quase moça. Ela trespassava na agulha uma linha, de azul profundo, e
bordava. Tecia paisagens com ponto de cruz, miúdos, mas tão miúdos, que ficava
difícil acreditar que não eram mares as águas que ela crucificava. Não erguia a
cabeça quase nunca. Vivia curvada sobre os panos, construindo suas cruzes sobre
um desconhecido calvário. Na testa trazia uma cicatriz enviesada. Os olhos
exigiram lentes grossas para desanuviar o mundo. Ao brincar com sua boneca de
celuloide, trancada no banheiro - escondendo-se do pai - caiu e levou muitos
pontos. O medo bordou sua fronte com pontos de dor.