Breve
relato do autor:
Jonathan Franzen é um escritor
norte-americano, colaborador das revistas The
New Yorker e Harper´s. Foi eleito
pela revista literária Granta um dos 20 melhores jovens romancistas americanos.
Dados
da obra:
As Correções narra a história dos conflitos religiosos, geracionais e de costumes de uma típica família americana na última década do século XX. A família Lambert encarna a crise de valores da sociedade contemporânea.
Passagens:
As acusações de Melissa o deixaram em
carne viva. E nunca tinha percebido o quanto levara a sério a injunção paterna
de dedicar-se a um trabalho que fosse “útil” para a sociedade. Criticar uma
cultura doente, mesmo que essas críticas não tivessem qualquer efeito, sempre
lhe parecera um trabalho útil. Mas se a suposta doença simplesmente não fosse
doença alguma – se a grande Ordem Materialista da tecnologia e do apetite
consumista e da ciência médica estava de fato contribuindo para melhorar as vidas
do que antes eram oprimidos, se eram apenas os homens brancos heterossexuais como
Chip que se sentiam incomodados com essa ordem – então sua crítica não tinha
nem de longe a menor utilidade ainda que apenas abstrata. Era tudo, nas
palavras de Melissa, pura cascata.
Aquele seu mal ofendia seu sentido
de compostura. Aquelas mãos trêmulas pertenciam a ele e a mais ninguém, e no
entanto recusavam-se a obedecê-lo. Como crianças impossíveis de dois anos,
entregues a um ataque de voluntarismo. Quanto mais severas eram as ordens que
lhes transmitia, menos elas lhe davam ouvidos e mais escapavam a seu controle.
Ele sempre tinha sido vulnerável à recalcitrância infantil, e à sua recusa de
comportarem-se como adultos. A irresponsabilidade e a indisciplina eram a
maldição de sua existência, e ali estava mais um exemplo de lógica diabólica:
que seu mal consistisse justamente na recusa de seu corpo em obedecê-lo. Se tua
mão direita de ofender, disse Jesus, corta-a fora.
Ficou pateticamente óbvio que tinha
pensado que seus livros pudessem lhe render centenas de dólares. Afastou-se das
lombadas acusadoras, lembrando como cada uma delas tinha acenado para ele numa
livraria com a promessa de uma crítica radical da sociedade capitalista
avançada, e o quanto ele ficara feliz em levá-las para casa. Mas Jürgen
Habermas não tinha as pernas longas e elegantes de Julia, lembrando uma
pereira, Theodor Adorno não tinha o cheiro de vinho lascivo e maleável de
Julia, Fred Jameson não tinha a língua habilidosa de Julia. Em torno do começo
de outubro, quando Chip enviou seu roteiro acabado para Eden Procuro, já tinha
vendido suas feministas, seus formalistas, seus estruturalistas, seus
pós-estruturalistas, seus freudianos e seus gays. Quando precisou levantar
dinheiro para o almoço com seus pais e Denise, tudo que lhe restava eram seus
amados historiadores de cultura e sua obra completa de Shakespeare da Arden,
encadernada; mas como uma certa mágica residia em Shakespeare – os volumes
uniformes, em suas sobrecapas azul-claras, eram como um arquipélago de refúgios
-; empilhou seus Focault e seus Greenblatt e Poovey em sacolas de compras, e
vendeu todos por cento e quinze dólares.
Haver ou não gente era tudo para uma
casa. Era mais que um fato importante: era o único fato.
A famíla era a alma da casa.
O espírito desperto era como uma luz
numa casa.
A alma era como a toupeira em sua
toca.
A consciência estava para o cérebro
como a família para a casa.
Aristóteles: Se o olho fosse um animal, a visão seria a sua alma.
Ocorreu a Enid naquele momento uma
visão de chuva. Viu-se numa casa sem paredes para fugir do mau tempo, só tinha
um lenço de papel. E lá vinha a chuva leste, e ela apertava uma versão-lenço de
papel de Chip, com seu ótimo emprego novo de repórter. Depois a chuva vinha do
oeste, e o tecido era o quanto os filhos de Gary eram belos e inteligentes, e o
quanto gostava deles. Depois o vento mudava, e ela saía correndo para o lado norte da casa com os frangalhos de lenço que
Denise lhe permitia ter, que ela tinha se casado cedo demais, mas agora estava
mais velha e ajuizada, fazendo sucesso como sócia de um restaurante e esperando
para encontrar o homem certo. E então a chuva vinha trovejando do sul, e o
lenço se desintegrava enquanto ela insistia que o problema de Al era muito leve
e que ele iria ficar bem, se mudasse de atitude e tomasse a medicação certa, e
a chuva cada vez mais forte, e ela tão cansada, e só tinha o pano...
Ele estava recordando as noites em
que tinha ficado no andar de cima com os dois meninos ou a menina deitada em
seus braços, as cabeças úmidas cheirando a banho apoiadas em suas costelas
enquanto ele lia em voz alta para eles Beleza
Negra e as Crônicas de Nárnia. Como
se a sua voz, a ressonância palpável de sua voz, bastasse para deixá-los
sonolentos. Eram noites, e foram centenas, talvez milhares, em que nada
traumático o suficiente para deixar uma cicatriz tinha acontecido naquela
unidade nuclear. Noites após noites iguais, em sua poltrona de couro negro; doces
noites de dúvida em meio a noites de desoladora certeza. Ocorreram-lhe agora,
aqueles contra-exemplos esquecidos, porque no fim, quando você está caindo na
água, não tem nada de sólido em que se agarrar além de seus filhos.