terça-feira, 9 de outubro de 2012

As Correções


Franzen, Jonathan. As Correções. Companhia das Letras; São Paulo / SP; 2011; 584 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
Jonathan Franzen é um escritor norte-americano, colaborador das revistas The New Yorker e Harper´s. Foi eleito pela revista literária Granta um dos 20 melhores jovens romancistas americanos.
 
Dados da obra:
 
As Correções narra a história dos conflitos religiosos, geracionais e de costumes de uma típica família americana na última década do século XX. A família Lambert encarna a crise de valores da sociedade contemporânea.
  
Passagens:
 
As acusações de Melissa o deixaram em carne viva. E nunca tinha percebido o quanto levara a sério a injunção paterna de dedicar-se a um trabalho que fosse “útil” para a sociedade. Criticar uma cultura doente, mesmo que essas críticas não tivessem qualquer efeito, sempre lhe parecera um trabalho útil. Mas se a suposta doença simplesmente não fosse doença alguma – se a grande Ordem Materialista da tecnologia e do apetite consumista e da ciência médica estava de fato contribuindo para melhorar as vidas do que antes eram oprimidos, se eram apenas os homens brancos heterossexuais como Chip que se sentiam incomodados com essa ordem – então sua crítica não tinha nem de longe a menor utilidade ainda que apenas abstrata. Era tudo, nas palavras de Melissa, pura cascata.
 
Aquele seu mal ofendia seu sentido de compostura. Aquelas mãos trêmulas pertenciam a ele e a mais ninguém, e no entanto recusavam-se a obedecê-lo. Como crianças impossíveis de dois anos, entregues a um ataque de voluntarismo. Quanto mais severas eram as ordens que lhes transmitia, menos elas lhe davam ouvidos e mais escapavam a seu controle. Ele sempre tinha sido vulnerável à recalcitrância infantil, e à sua recusa de comportarem-se como adultos. A irresponsabilidade e a indisciplina eram a maldição de sua existência, e ali estava mais um exemplo de lógica diabólica: que seu mal consistisse justamente na recusa de seu corpo em obedecê-lo. Se tua mão direita de ofender, disse Jesus, corta-a fora.
 
Ficou pateticamente óbvio que tinha pensado que seus livros pudessem lhe render centenas de dólares. Afastou-se das lombadas acusadoras, lembrando como cada uma delas tinha acenado para ele numa livraria com a promessa de uma crítica radical da sociedade capitalista avançada, e o quanto ele ficara feliz em levá-las para casa. Mas Jürgen Habermas não tinha as pernas longas e elegantes de Julia, lembrando uma pereira, Theodor Adorno não tinha o cheiro de vinho lascivo e maleável de Julia, Fred Jameson não tinha a língua habilidosa de Julia. Em torno do começo de outubro, quando Chip enviou seu roteiro acabado para Eden Procuro, já tinha vendido suas feministas, seus formalistas, seus estruturalistas, seus pós-estruturalistas, seus freudianos e seus gays. Quando precisou levantar dinheiro para o almoço com seus pais e Denise, tudo que lhe restava eram seus amados historiadores de cultura e sua obra completa de Shakespeare da Arden, encadernada; mas como uma certa mágica residia em Shakespeare – os volumes uniformes, em suas sobrecapas azul-claras, eram como um arquipélago de refúgios -; empilhou seus Focault e seus Greenblatt e Poovey em sacolas de compras, e vendeu todos por cento e quinze dólares.
 
Haver ou não gente era tudo para uma casa. Era mais que um fato importante: era o único fato.
A famíla era a alma da casa.
O espírito desperto era como uma luz numa casa.
A alma era como a toupeira em sua toca.
A consciência estava para o cérebro como a família para a casa.
Aristóteles: Se o olho fosse um animal, a visão seria a sua alma.
 
Ocorreu a Enid naquele momento uma visão de chuva. Viu-se numa casa sem paredes para fugir do mau tempo, só tinha um lenço de papel. E lá vinha a chuva leste, e ela apertava uma versão-lenço de papel de Chip, com seu ótimo emprego novo de repórter. Depois a chuva vinha do oeste, e o tecido era o quanto os filhos de Gary eram belos e inteligentes, e o quanto gostava deles. Depois o vento mudava, e ela saía correndo para o lado norte da casa com os frangalhos de lenço que Denise lhe permitia ter, que ela tinha se casado cedo demais, mas agora estava mais velha e ajuizada, fazendo sucesso como sócia de um restaurante e esperando para encontrar o homem certo. E então a chuva vinha trovejando do sul, e o lenço se desintegrava enquanto ela insistia que o problema de Al era muito leve e que ele iria ficar bem, se mudasse de atitude e tomasse a medicação certa, e a chuva cada vez mais forte, e ela tão cansada, e só tinha o pano...
 
Ele estava recordando as noites em que tinha ficado no andar de cima com os dois meninos ou a menina deitada em seus braços, as cabeças úmidas cheirando a banho apoiadas em suas costelas enquanto ele lia em voz alta para eles Beleza Negra e as Crônicas de Nárnia. Como se a sua voz, a ressonância palpável de sua voz, bastasse para deixá-los sonolentos. Eram noites, e foram centenas, talvez milhares, em que nada traumático o suficiente para deixar uma cicatriz tinha acontecido naquela unidade nuclear. Noites após noites iguais, em sua poltrona de couro negro; doces noites de dúvida em meio a noites de desoladora certeza. Ocorreram-lhe agora, aqueles contra-exemplos esquecidos, porque no fim, quando você está caindo na água, não tem nada de sólido em que se agarrar além de seus filhos.