segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O Arroz de Palma


Azevedo, Francisco. O arroz de Palma. Record; Rio de Janeiro / RJ; 2011; 364 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
Francisco Azevedo é dramaturgo, roteirista cinematográfico, poeta e ex-diplomata. Começou a dedicar-se à literatura em 1967 ao vencer um concurso promovido pela OEA. Já escreveu mais de 250 produções, incluindo roteiros de longa e curta-metragem, documentários e multimídias premiados e comerciais de TV.
 
Dados da obra:
 
Primeiro romance a tratar da imigração portuguesa para o Brasil no século XX, o livro narra a saga de uma família em busca de um futuro melhor, superando todas as dificuldades. Nos cem anos em que acompanhamos a vida desta família, irmãos brigam e fazem as pazes. Uns casam e são felizes, outros se separam. Tudo sempre acompanhado pelo arroz jogado no casamento dos patriarcas da família em 1908 e que serve de fio condutor da história.
 
Passagens:
 
O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. Não existe. “Família à Oswaldo Aranha”, “Família à Rossini”, “Família à Belle Meunière” ou “Família ao Molho Pardo” – em que o sangue é fundamental para o preparo da iguaria. Família é afinidade, é “à Moda da Casa”. E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito.
 
Há família doces. Outras, meio amargas. Outras apimentadíssimas. Há também as que não têm gosto de nada – seriam assim um tipo de “Família Diet”, que você suporta só para manter a linha. Seja como for família é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir.
 
... O que um veterano cozinheiro pode dizer é que por mais sem graça por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer. Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas. Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana na louça, no alumínio ou no barro, Aproveite ao máximo. Família é prato que, quando se acaba, numa mais se repete.
 
... Família é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é um problema – principalmente no Natal e no Ano Novo. Pouco importa a qualidade da panela, fazer uma família exige coragem, devoção e paciência. Não é qualquer um. Os truques, os segredos, o imprevisível. Às vezes, dá até vontade de desistir. Preferimos o desconforto do estômago vazio. Vêm a preguiça, a conhecida falta de imaginação sobre o que se vai comer e aquele fastio. Mas a vida – azeitona verde no palito – sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite. O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os lugares. Súbito, feito milagre, a família está servida.
 
Cedo também aprendi que o corpo conhece outras maneiras de se purificar. A urina, a menstruação, o vômito as espinhas, o esperma, a coriza e o suor, tudo nos purifica. O que o corpo põe para fora é sinal de purificação. Assim, as lágrimas seriam a forma mais elevada de nos purificarmos. E o nascimento de uma criança a mais completa.
 
Descobri que, mesmo protegidos pelas mais avançadas precauções tecnológicas, os jovens de hoje continuam com a ancestral dificuldade: saber a hora exata de abaixar o fogo. Fiz ver a ele que não adiantam micro-ondas com programação computadorizada, congelados, sopas instantâneas e tantas outras modernidades: sempre haverá aprendizado. Máquinas se reproduzem e evoluem com tamanha rapidez que nem há tempo para conflitos entre uma geração e outra. Mas nós, humanos – mesmo os de última geração –, somos lentos demais. Nossos progressos são imperceptíveis. Demoramos décadas para perceber êxitos e fracassos. Quando, depois de muito esforço, nos tornamos mestres na arte culinária, quando, de olhos fechados, acertamos o ponto do doce muitos já se foram. A família que se senta à mesa é outra. Já não somos netos, mas avós.
 
... Me tornei um homem menos egoísta, mais equilibrado emocionalmente. Por quê? Ora, por que! Meus filhos me mudaram. Cada filho é aprendizado, lição de vida. E, ao mesmo tempo, muito dever de casa, exercícios complicados, que nós, os pais, vamos tentando resolver com paciência a cada dia pela vida afora. No início, a paciência é pouca e o exercício, daquele de nos arrancar os cabelos. Mas nada que o bom berro não resolva. Berro que vem bem lá de dentro. Das entranhas. Berro de trovão. Com careta de Deus e amor infindo. Um berro assim todo filho entende. E atende.
 
Coleciono alguns guardados preciosos que, quando eu morrer, serão jogados fora, porque só fazem sentido para mim. A memória material deles começa e acaba em mim. Só eu lhes estimo o valor.
 
Meus irmãos, solteiros, eram uns. Casados, são outros. Também me vejo diferente agora que vivo com Isabel. Se mudamos por nós mesmos, misturados a alguém, mudamos mais. Para melhor ou para pior, nunca se sabe. Química que funciona? E o encontro? Me diz: como se dá? Destino? Elaboradíssima dramaturgia divina? Graça obtida do santo casamenteiro? Ou uma seleção assim mais próxima de Darwin? Ou ciência nenhuma, mistério nenhum? Seja lá como for, matrimônios e patrimônios vão desfigurando a família. A transformação acontece naturalmente. O núcleo original se desfaz, surgem novos núcleos. E não há como manter os mesmos lugares à mesa. Todos se acomodam de outro jeito...
 
Devia, sim. É claro que devias. Assim te vais aprimorar. Ainda és muito moço, não abriste mão de nada, tua vidinha está intacta. Um dia, mais cedo ou mais tarde, hás de saber que saudades, no plural, são lembranças, cumprimentos que se mandam. É muito pouco, Antonio, pra exprimir este sentimento que eu e teus pais trazemos na alma com relação a Portugal e ao que lá deixamos. Saudade, sim! Saudade, no singular, é a palavra que condiz. Pode até achar que é detalhe. Mas é detalhe precioso a que só nossa língua se dá ao luxo de chegar.
 
Calado, Nuno me diz tudo o que lhe vem à cabeça e de forma contundente. Concordo com ele. Palavra mete medo, assusta. Toda palavra. A mais inofensiva, súbito causa estrago. Uma combinação equivocada, um tom infeliz, uma vírgula precipitada ou omissa podem significar o desastre. Palavra machuca, deixa marca. Palavra mata. Palavra deveria ficar guardada bem no fundo, no alto dos armários. Longe do alcance das crianças. E dos adultos. Palavra é arma. É preciso ter porte para usá-la. Nuno tem. Porte e postura de quem sabe o que quer. Por isso seu calar não dura para sempre. Nuno arrisca novamente comigo. É generoso.