Breve
relato do autor:
Francisco Azevedo é dramaturgo, roteirista
cinematográfico, poeta e ex-diplomata. Começou a dedicar-se à literatura em
1967 ao vencer um concurso promovido pela OEA. Já escreveu mais de 250
produções, incluindo roteiros de longa e curta-metragem, documentários e
multimídias premiados e comerciais de TV.
Dados
da obra:
Primeiro romance a tratar da
imigração portuguesa para o Brasil no século XX, o livro narra a saga de uma
família em busca de um futuro melhor, superando todas as dificuldades. Nos cem
anos em que acompanhamos a vida desta família, irmãos brigam e fazem as pazes.
Uns casam e são felizes, outros se separam. Tudo sempre acompanhado pelo arroz
jogado no casamento dos patriarcas da família em 1908 e que serve de fio
condutor da história.
Passagens:
O pior é que ainda tem gente que
acredita na receita da família perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. Não existe.
“Família à Oswaldo Aranha”, “Família à Rossini”, “Família à Belle Meunière” ou
“Família ao Molho Pardo” – em que o sangue é fundamental para o preparo da
iguaria. Família é afinidade, é “à Moda da Casa”. E cada casa gosta de preparar
a família a seu jeito.
Há família doces. Outras, meio
amargas. Outras apimentadíssimas. Há também as que não têm gosto de nada –
seriam assim um tipo de “Família Diet”, que você suporta só para manter a
linha. Seja como for família é prato que deve ser servido sempre quente,
quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir.
... O que um veterano cozinheiro
pode dizer é que por mais sem graça por pior que seja o paladar, família é
prato que você tem que experimentar e comer. Se puder saborear, saboreie. Não
ligue para etiquetas. Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana na
louça, no alumínio ou no barro, Aproveite ao máximo. Família é prato que,
quando se acaba, numa mais se repete.
... Família é prato difícil de
preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é um problema – principalmente
no Natal e no Ano Novo. Pouco importa a qualidade da panela, fazer uma família
exige coragem, devoção e paciência. Não é qualquer um. Os truques, os segredos,
o imprevisível. Às vezes, dá até vontade de desistir. Preferimos o desconforto
do estômago vazio. Vêm a preguiça, a conhecida falta de imaginação sobre o que
se vai comer e aquele fastio. Mas a vida – azeitona verde no palito – sempre
arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite. O tempo põe a mesa,
determina o número de cadeiras e os lugares. Súbito, feito milagre, a família
está servida.
Cedo também aprendi que o corpo
conhece outras maneiras de se purificar. A urina, a menstruação, o vômito as
espinhas, o esperma, a coriza e o suor, tudo nos purifica. O que o corpo põe
para fora é sinal de purificação. Assim, as lágrimas seriam a forma mais elevada
de nos purificarmos. E o nascimento de uma criança a mais completa.
Descobri que, mesmo protegidos pelas
mais avançadas precauções tecnológicas, os jovens de hoje continuam com a
ancestral dificuldade: saber a hora exata de abaixar o fogo. Fiz ver a ele que
não adiantam micro-ondas com programação computadorizada, congelados, sopas
instantâneas e tantas outras modernidades: sempre haverá aprendizado. Máquinas
se reproduzem e evoluem com tamanha rapidez que nem há tempo para conflitos
entre uma geração e outra. Mas nós, humanos – mesmo os de última geração –,
somos lentos demais. Nossos progressos são imperceptíveis. Demoramos décadas
para perceber êxitos e fracassos. Quando, depois de muito esforço, nos tornamos
mestres na arte culinária, quando, de olhos fechados, acertamos o ponto do doce
muitos já se foram. A família que se senta à mesa é outra. Já não somos netos,
mas avós.
... Me tornei um homem menos
egoísta, mais equilibrado emocionalmente. Por quê? Ora, por que! Meus filhos me
mudaram. Cada filho é aprendizado, lição de vida. E, ao mesmo tempo, muito
dever de casa, exercícios complicados, que nós, os pais, vamos tentando
resolver com paciência a cada dia pela vida afora. No início, a paciência é
pouca e o exercício, daquele de nos arrancar os cabelos. Mas nada que o bom
berro não resolva. Berro que vem bem lá de dentro. Das entranhas. Berro de
trovão. Com careta de Deus e amor infindo. Um berro assim todo filho entende. E
atende.
Coleciono alguns guardados preciosos
que, quando eu morrer, serão jogados fora, porque só fazem sentido para mim. A
memória material deles começa e acaba em mim. Só eu lhes estimo o valor.
Meus irmãos, solteiros, eram uns.
Casados, são outros. Também me vejo diferente agora que vivo com Isabel. Se
mudamos por nós mesmos, misturados a alguém, mudamos mais. Para melhor ou para
pior, nunca se sabe. Química que funciona? E o encontro? Me diz: como se dá?
Destino? Elaboradíssima dramaturgia divina? Graça obtida do santo casamenteiro?
Ou uma seleção assim mais próxima de Darwin? Ou ciência nenhuma, mistério
nenhum? Seja lá como for, matrimônios e patrimônios vão desfigurando a família.
A transformação acontece naturalmente. O núcleo original se desfaz, surgem
novos núcleos. E não há como manter os mesmos lugares à mesa. Todos se acomodam
de outro jeito...
Devia, sim. É claro que devias.
Assim te vais aprimorar. Ainda és muito moço, não abriste mão de nada, tua vidinha
está intacta. Um dia, mais cedo ou mais tarde, hás de saber que saudades, no
plural, são lembranças, cumprimentos que se mandam. É muito pouco, Antonio, pra
exprimir este sentimento que eu e teus pais trazemos na alma com relação a
Portugal e ao que lá deixamos. Saudade, sim! Saudade, no singular, é a palavra
que condiz. Pode até achar que é detalhe. Mas é detalhe precioso a que só nossa
língua se dá ao luxo de chegar.
Calado, Nuno me diz tudo o que lhe
vem à cabeça e de forma contundente. Concordo com ele. Palavra mete medo,
assusta. Toda palavra. A mais inofensiva, súbito causa estrago. Uma combinação
equivocada, um tom infeliz, uma vírgula precipitada ou omissa podem significar
o desastre. Palavra machuca, deixa marca. Palavra mata. Palavra deveria ficar
guardada bem no fundo, no alto dos armários. Longe do alcance das crianças. E
dos adultos. Palavra é arma. É preciso ter porte para usá-la. Nuno tem. Porte e
postura de quem sabe o que quer. Por isso seu calar não dura para sempre. Nuno
arrisca novamente comigo. É generoso.