Breve relato do autor:
Rubens
Figueiredo é um romancista e tradutor brasileiro, duas vezes ganhador do Prêmio
Jabuti de Literatura. Possui sete livros em sua obra, além de mais de 40
traduções publicadas, principalmente da língua russa para o português. Também é
professor de Português para o Ensino Médio.
Dados da obra:
Passageiro
do fim do dia se concentra no trajeto de um ônibus urbano, no fim de tarde de
sexta feira, entre o centro de uma metrópole e um bairro suburbano. Tudo se
passa entre os escassos acontecimentos exteriores e os pensamentos de Pedro, o
protagonista, um comerciante de livros usados.
Passagens:
... A sombra
da fila, estendida quase ao máximo sobre a calçada, era a única sombra. A
demora do ônibus, o bafo de urina e de lixo, a calçada feita de buracos e
poças, o asfalto ardente com borrões azuis de óleo, quase a ponto de fumegar –
Pedro já estava até habituado. Não são os mimados, mas sim os adaptados que vão
sobreviver.
Rosane, ao
contar, achava que cada vez menos gente saía de casa para trabalhar ou para ir
à escola, cada vez mais gente ficava em casa ou na rua, à toa. Os nomes Tirol e
Várzea começaram a aparecer nos jornais, na televisão, nos noticiários de
crime. Os grupos armados nos dois bairros pareceram crescer e se hostilizavam.
Juravam vinganças seguidas. Sem notar, as crianças começaram a aprender aquela
raiva desde pequenas. Educavam-se com ela, tomavam gosto e se alimentavam
daquela rivalidade Cresciam para a raiva, aquilo lhes dava um peso, enchia seu
horizonte quase vazio – nada senão aquilo fazia delas alguém mais presente.
Nos vultos
espaçosos de crianças, adolescentes ou adultos em volta do fogo em seus
movimentos vagarosos, sem atenção sem propósito, mas insistentes, como se não
conseguissem afastar-se dali, Pedro começou a notar os traços de uma espécie de
culto noturno ancestral. Traços de uma adoração espontânea e desinteressada.
Coisa rápida, a mais simples possível, sem alcance além daqueles minutos e
daqueles poucos metros. Tratava-se, quem sabe, de uma espécie de identificação,
de uma assimilação momentânea, entre eles e o fogo.
Em geral,
ali ninguém conversava. Era raro alguém dormir. Às vezes uma pessoa tentava
vender um lugar melhor na fila, mais na frente. Se ele tivesse dinheiro,
compraria, entraria na frente dos outros ninguém ia reclamar. Acontecia sempre.
Lá dentro, horas depois, havia ar-refrigerado e cadeiras estofadas para todos.
Mesmo assim, às vezes, na hora da consulta, o médico olhava para os pacientes
com certa apreensão. Sabia que a sorte deles estava em suas mãos: aquela gente
tinha uma doença para oferecer em troca de uma renda mensal e cabia ao médico
avaliar a doença, classificar o estrago, medir seu interesse, seu prazo, seu
fator destrutivo – e depois alugar a doença por um tempo, comprá-la para sempre
ou apenas rejeitá-la, e chamar o próximo paciente.
No caso e
Pedro, havia uma diferença. Ele não precisava ficar no Tirol. Sempre saía de lá
domingo à noitinha, para voltar só na sexta-feira seguinte. E sabia disso muito
bem: uma questão de tempo, de dias. O Tirol para ele tinha horário certo. Pedro
podia nem ir lá, na verdade, podia ficar na casa de sua mãe – onde o ar e o
cheiro, onde as paredes e o chão, de casa e da rua, onde a luz da janela e tudo
parecia tão diferente e assinalava – de um modo brusco e até petulante – uma
segurança e uma distância em relação ao Tirol.