quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Carta ao pai

Kafka, Franz. Carta ao Pai. Editora Martin Claret. São Paulo / SP; 2012; 112 páginas.

Breve relato do autor:
 
Franz Kafka foi um dos maiores escritores de ficção do século XX. De origem judaica, ele nasceu em Praga, Áustria-Hungria (atual República Checa), e escrevia em língua alemã. O conjunto de seus textos – na maioria incompletos e publicados postumamente – situa-se entre os mais influentes da literatura ocidental.

Dados da obra:
 
Publicado postumamente, Carta ao Pai é uma carta que Kafka escreveu para seu pai e que nunca chegou a ser enviada. Foi escrita em 1919 e revisada diversas vezes antes da morte do autor; nela, discorre sobre a relação conturbada com o pai, um comerciante judeu, autoritário e de personalidade forte, que sempre impôs aos filhos sua visão de mundo e que despertava em Kafka um conjunto de emoções conflitantes, do ódio pungente à mais profunda admiração.
 
Passagens:
 
“Querido pai:
Perguntaste-me certa vez porque motivo eu afirmava que te temia. Como de hábito, não soube o que te responder, em parte exatamente pelo temor que me infundes, e em parte porque os pormenores que contribuem para o fundamento desse temor são em demasia para que os possa manter reunidos, nem mesmo pela metade, durante a palestra. E mesmo essa tentativa de responder-te por escrito ficará inconclusa, porque, também ao escrever, o temor e os seus efeitos inibem-me diante de ti, e a magnitude do tema está além de minha memória e compreensão...”
 
Com mais acerto dirigias tua antipatia contra o fato de eu escrever e tudo quanto, desconhecido para ti, se relacionava com essa atividade. Nela realmente, me tinha eu tornado independente e afastado parcialmente de ti, mesmo quando a situação fazia lembrar um verme que, amassado com o pé em sua parte traseira, parte com a anterior e se arrasta para um lado. Sentia-me de certo modo seguro, podia respirar, a aversão que logicamente sentias contra meus escritos me era extremamente grata...

Voo em português

Von, Cristina. Voo em Português. Instituto Callis. São Paulo / SP; 2012; 184 páginas.

Breve relato da autora:
 
Cristina Von é formada em Publicidade e Propaganda na Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP e durante anos trabalhou como designer gráfica. Aos 35 anos escreveu seus primeiros livros infantis. Depois disso não parou mais. Já publicou mais de 40 livros, entre livros adultos e infanto-juvenis.
 
Dados da obra:
 
O livro conta a história de Miguel, um jovem simpático e sonhador, que mora em Bragança Paulista, no estado de São Paulo, e se divide entre a paixão pela terra e pelo ar. Assim, se forma em veterinária e aprende a pilotar avião. No aeroclube da cidade, sua imaginação alça um grande voo: comprar um avião para fazer uma viagem por todos os lugares onde o português é falado. Seu sonho se torna realidade e ele consegue adquirir um avião, o "Corisco”, partindo assim em sua viagem.
 
Passagens:
 
Vocês pensam que a língua portuguesa é usada somente no Brasil e em Portugal? Pois saibam que ela é um dos idiomas mais falados do mundo! É a língua oficial em Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Timor Leste e em lugares como Macau, Damião e Diu e Goa.
– Goa? Onde fica isso? – perguntou Juarez.
– Na Índia!
 
Em Macau, Camões continuou os seus escritos, vivendo em uma gruta. Dizem que o escritor naufragou na foz do rio Mekong e que, entre salvar a sua companheira chinesa, Dinamene, celebrada em sonetos, preferiu salva os manuscritos de Os Lusíadas...
– E sua amada morreu? – perguntou Miguel perplexo.
– Faleceu. Em benefício da língua português, diga-se de passagem.
 
A cozinha goesa tem sabor de cravo-da-índia, açafrão e pimenta-do-reino. De entrada, Miguel escolheu bolinhos chamados boojés e pastéis triangulares, as chamuças. No menu principal, pratos à base de peixe, camarão ou frango e um sarapatel feito com carne e miúdos de porco ao molho de masala (uma mistura de todos os temperos fortes da Índia, incluindo cravo, pimenta, cominho, coentro e canela).
Depois experimentou uma sobremesa típica: a bebinca, um tipo de bolo com sabor de leite de coco e cardamomo, uma rara especiaria da família do gengibre.
 
Conta a lenda que, certo dia, uma rapaz ajudou um crocodilo a atravessar a lago para entrar no mar. O crocodilo ficou grato e prometeu que se lembraria dele para sempre. Algum tempo depois, o rapaz foi à beira do mar e chamou o crocodilo. Sentou-se nas costas do animal e os dois viajaram juntos durante anos. Embora fossem amigos, um dia crocodilo sentiu uma vontade irresistível de devorar o rapaz, mas envergonhados, desistiu da ideia.
Quando ficou velho, o animal disse ao amigo: “Em breve morrerei e formarei uma terra para ti e para todos os teus descendentes”. Então, quando morreu, o crocodilo transformou-se na ilha de Timor, dando a ela a sua forma. É por essa razão que o povo de Timor chama o crocodilo de “Avô”.
 
A primeira impressão que teve, ao ver anúncios e cartazes em português e entender o que ouvia as pessoas dizerem nas ruas, era de que não estava longe de casa. Tudo era estranhamente conhecido e, ao mesmo tempo, estranhamente novo. Andando pela capital, ficou impressionado ao perceber que era possível misturar a tradição e o passado à modernidade cosmopolita, sem que uma coisa agredisse a outra.
 
Com o passar do tempo, algumas comunidades falantes de português na África e na Ásia desenvolveram as suas línguas em vários crioulos. Com isso, muitas palavras foram acrescentadas ao vocabulário português, oriundas não só dos povos das colônias como de todas as terras com as quais Portugal teve contato. Por exemplo: gengibre e sândalo (do sânscrito); sapato (do indonésio); jangada e queijo (do malaio); mesa (do suaíli africano); chá nanquim (do chinês); gueixa e samurai (do japonês), etc.
 
... Florbela Espanca (1894-1930)
O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais; há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessoa, sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade... sei lá de quê!
 
A Língua Portuguesa é um vínculo histórico e patrimônio dos países que, embora se localizam geograficamente distantes, se identificam pelo idioma comum. Hoje, no mundo, mais de 200 milhões de pessoas falam o português.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Watchmen

Moore, Alan; Gibbons, Dave. Watchmen. Panini Books. Barueri / SP; 2005; 412 páginas.
 
Breve relato dos autores:
 
Alan Moore é um autor britânico de histórias em quadrinhos. E Dave Gibbons é um artista, também britânico, de história em quadrinhos.
 
Dados da obra:
 
Watchmen é uma série de história em quadrinhos escrita por Alan Moore e ilustrada por Dave Gibbons. A trama é situada nos Estados Unidos de 1985, um país no qual aventureiros fantasiados seriam realidade. O país estaria vivendo um momento delicado no contexto da Guerra Fria e em via de declarar uma guerra nuclear contra a União Soviética. Watchmen retrata os super-heróis como indivíduos verossímeis, que enfrentam problemas éticos e psicológicos, lutando contra neuroses e defeitos, e procurando evitar os arquétipos e super-poderes tipicamente encontrados nas figuras tradicionais do gênero.
 
Passagens:
 
Um corpo vivo e um morto contém o mesmo número de partículas.
Estruturalmente não há diferença discernível.
Vida e morte são abstrações não quantificáveis, por que eu deveria me importar?
 
Olha – eu disse – não faço ideia de como é escrever um livro. Tenho um monte de coisas na cabeça que quero pôr no papel, mas o que eu abordo primeiro? Por onde começar?
Sem levantar os olhos das caixas de detergente nas quais estava colando as etiquetas de preço, Denise, de bom grado, ofereceu-me uma pérola de acumulada sabedoria em sua voz repleta de entediada, mas benigna, condescendência:
– Comece pela coisa mais triste que você possa imaginar e conquiste logo a compaixão do leitor. Depois disso, vá por mim, tudo o mais fluirá sem esforço.
 
... Se podemos aceitar que partes flutuantes de um fuzil são reais, também temos ciência de que tudo que sabíamos ser verdadeiro talvez possa provavelmente ser irreal. Essa intranquilidade peculiar é alguma coisa com a qual a maioria de nós aprendeu a viver no decorrer dos anos, e ainda se faz presente.
 
Um mundo cresce ao meu redor. Será que eu o estou moldando ou seus contornos predeterminados guiam minha mão?
Em 1945, bombas caem no Japão, engrenagens no Brooklyn, sementes do futuro são plantadas negligentemente...
Sem mim as coisas teriam sido diferentes. Se o gordo não tivesse esmagado o relógio, se eu não o tivesse deixado na câmara... Sou eu o culpado, então? Ou o gordo? Ou meu pai por escolher minha carreira? Qual de nós é responsável? Quem fez o mundo?
Talvez o mundo não seja feito. Talvez nada seja feito. Talvez nada seja feito. Talvez simplesmente seja, tenha sido, será eternamente...
... Um relógio sem artesão.
 
Tigre, Tigre
ardente açoite
Nas florestas
da noite.
Que imortal olho ou guia
Pode captar-te a terrível simetria?
(William Blake)
 
Mas ele não disse o que o compele. Não é sua infância, sua mãe ou Kitty Genovese. Essas coisas apenas o fizeram reagir à injustiça do mundo.
Nada disso o fez cruzar o limite.
Nada disso o transformou em Rorschach.
É como se o contato contínuo com os elementos mais deploráveis da sociedade o tivesse tornado ainda mais deplorável, ainda pior.
Se eu pudesse convencê-lo de que a vida não é assim, de que o mundo não é assim...
Eu sei que não é.
 
A existência é aleatória, sem padrão, a não ser o que imaginamos depois de ficar olhando por muito tempo. Sem sentido, a não ser o que decidimos dar.
Não são forças metafísicas vagas que moldam este mundo. Não é Deus quem mata as crianças. Não é o destino que as trucida ou a sina que as dá de comer aos cães.
Somos nós.
Só nós.
 
Eu me sento.
Olha a mancha de Rorschach.
Tentei fingir que parecia uma árvore frondosa, com sombras sobre ela, mas não consegui.
A imagem lembrava o gato morto que um dia encontrei, as larvas gordas e cegas que se rastejavam, abrindo túneis freneticamente para longe da luz.
Mas mesmo essa imagem é para evitar o verdadeiro horror.
O horror é este: ao final tudo não passa de uma imagem de escuridão, vazia e sem sentido.
Estamos sozinhos.
Não existe mais nada.
 
Não enfrentes monstros sob pena de te tornares um deles, e se contemplas o abismo, a ti o abismo também contempla.
(Friedrich Wilheim Nietzsche)
 
Eu questionava o sentido de tanta labuta, o propósito do esforço sem fim, que leva a nada, deixando as pessoas vazias e desiludidas...
... deixando-as alquebradas.
Tudo bem, admito que muita gente teve vida azarada, não realizou nada palpável, mas... mas será que nós temos importância no conjunto do universo? Só a existência da vida já não é algo significativo?
Em minha opinião, ela é um fenômeno exageradamente valorizado. Marte se dá muito bem sem um único microorganismo.
 
Mas o mundo é tão cheio de pessoas, tão repleto desses milagres que eles se tornam lugar-comum e nós os esquecemos...
Eu esqueci.
Nós contemplamos continuamente o mundo e ele se torna opaco às nossas percepções. No entanto, encarado de um novo ponto de vista, ele ainda pode ser impressionante.
 
Vamos. Enxugue as lágrimas, porque você é vida, mais rara do que um quark e mais imprevisível do que qualquer sonho de Heisenberg. A argila na qual as forças que moldam a existência deixam suas impressões digitais mais claras.
Enxugue as lágrimas...
... E vamos para casa.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

A história sem fim

Ende, Michel. A história sem fim. Martins Fontes / Editorial Presença. São Paulo / SP; 1985; 392 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
Michel Ende foi um escritor alemão de romances sobre fantasia e livros infantis e parte de um movimento antroposófico (estudo do homem sob o ponto de vista moral e intelectual).
 
Dados da obra:
 
“A História Sem Fim” conta a aventura de um garoto solitário que através das páginas de um livro passa para o reino da fantasia. Nesta terra imaginária, numa busca cheia de perigos, Bastian descobre a verdadeira medida de sua própria coragem e sua capacidade para amar.
 
Passagens:
 
Bastian deu-se conta de que durante todo o tempo estivera olhando fixamente o livro que o sr. Koreander tinha nas mãos e que se encontrava agora sobre a poltrona de couro. Era como se o livro tivesse uma espécie de magnetismo que o atraía irresistivelmente.
Aproximou-se da poltrona, estendeu a mão devagar, e tocou o livro – e no mesmo instante ouviu dentro de si um “clique”, como se tivesse sido pego em uma ratoeira. Bastian teve a estranha sensação de que aquele toque desencadeara qualquer coisa que agora devia forçosamente seguir seu curso.
... Em suma, as paixões são tão diferentes quanto o são as pessoas.
A paixão de Bastian Baltasar Bux eram os livros.
 
Quem nunca passou tardes inteiras diante de um livro com as orelhas ardendo e o cabelo caído sobre o rosto, esquecido de tudo o que o rodeia e sem se dar conta de que está com fome ou com frio...
Quem nunca se escondeu embaixo dos cobertores lendo um livro à luz de uma lanterna, depois de o pai ou a mãe ou qualquer outro adulto lhe ter apagado a luz, com o argumento bem-intencionado de que já é hora de ir para a cama, pois no dia seguinte é preciso levantar cedo...
Quem nunca chorou, às escondidas ou na frente de todo mundo, lágrimas amargas porque uma história maravilhosa chegou ao fim e é preciso dizer adeus às personagens na companhia das quais se viveram tantas aventuras, que foram amadas e admiradas, pelas quais se temeu ou ansiou, e sem cuja companhia a vida parece vazia e sem sentido...
Quem não conhece tudo isto por experiência própria provavelmente não poderá compreender o que Bastian fez em seguida.
Olhou fixamente o título do livro e sentiu, ao mesmo tempo, arrepios de frio e uma sensação de calor. Ali estava uma coisa com a qual ele já havia sonhado muitas vezes, que tinha desejado muitas vezes desde que dele se apoderara aquele paixão secreta: uma história que nunca acabasse! O livro dos livros!
Tinha de o conseguir a qualquer custo!
 
“Gostaria de saber”, disse para si mesmo, “o que se passa dentro de um livro quando ele está fechado. É claro que lá dentro só há letras impressas..., mas, apesar disso, deve acontecer alguma coisa, porque quando o abro, existe ali uma história completa. Lá dentro há pessoas que ainda não conheço e toda a espécie de aventuras, feitos e combates – e muitas vezes há tempestades no mar, ou alguém vai a países e cidades exóticos. Tudo isso, de algum modo, está dentro do livro. É preciso lê-lo para o saber, é claro. Mas antes disso, já está lá dentro. Gostaria de saber como...”
 
Não gostava dos livros que, com mau humor e acidamente, narravam acontecimentos absolutamente vulgares. Conhecia muito bem tudo isso da sua vida real, por isso não precisava ler essas coisas. Além disso, detestava quando queriam convencê-lo a fazer alguma coisa. E esses livros queriam sempre convencer as pessoas de alguma coisa, de uma maneira mais ou menos óbvia. Bastian preferia os livros emocionantes, ou divertidos, ou que falavam à imaginação: livros que contavam as aventuras fabulosas de criaturas fantásticas e em que se podia imaginar tudo o que se quisesse.
 
– Você é novo, menino. Nós somos velhas. Se você fosse velho como nós, saberia que não há nada senão tristeza. Veja uma coisa. Por que não haveríamos de morrer, você, eu, a imperatriz Criança, todos, todos? Tudo é aparência, tudo é um jogo do Nada. Tudo vai dar exatamente no mesmo. Deixe-nos em paz, menino, vá embora.
 
Naquele momento, Bastian fez uma importante descoberta: podemos estar convencidos durante muito tempo – anos talvez – de que queremos alguma coisa, se soubermos que nosso desejo é irrealizável. Porém, se de súbito nos vemos diante da possibilidade de este desejo ideal se transformar em realidade, passamos a desejar apenas uma coisa: nunca tê-lo desejado.
 
Começaram a ver ao longe o castelo de Horok que se erguia em meio à Floresta das Orquídeas. Parecia efetivamente uma mão gigante, com os cinco dedos levantados e estendidos.
– Mas há uma coisa que tem de ficar bem clara, disse Bastian repentinamente. Estou decidido a não voltar ao meu mundo. Ficarei para sempre em Fantasia. Sinto-me muito bem aqui. Por isso, não me custa nada renunciar a todas as minhas recordações. E quanto ao futuro de Fantasia, não há problemas: posso dar mil novos nomes à Imperatriz Criança. Já não precisamos do mundo dos homens!
 
– Então escute, ó Grande Sábio, a nossa pergunta: o que é Fantasia?
– Fantasia é a História Sem Fim.
 
Bastian viu que, no meio do caminho, estava sentada uma mulher que tentava apanhar as ervilhas de um prato com uma agulha de costura.
– Como chegaram aqui? O que fazem?, perguntou Bastian.
– Ora, sempre tem havido seres humanos que não encontraram o caminho de volta para seu mundo explicou Argax. Primeiro não queriam e agora... digamos... já não podem.
 
Passado o perigo, todos os Iskalnari vieram outra vez para cima e recomeçaram a viagem com seu canto e sua dança, como se nada tivesse acontecido. Sua harmonia não fora perturbada, não se lamentaram. Nem se queixaram e não trocaram uma única palavra sobre o acidente.
– Não, disse um deles quando Bastian tocou no assunto. Não falta ninguém. Por que haveríamos de nos lamentar?
O indivíduo não contava para eles. E, dado que eram todos iguais, ninguém era insubstituível.