Ende, Michel. A
história sem fim. Martins Fontes / Editorial Presença. São Paulo / SP; 1985;
392 páginas.
Breve
relato do autor:
Michel
Ende foi um escritor alemão de romances sobre fantasia e livros infantis e
parte de um movimento antroposófico (estudo do homem sob o ponto de vista moral
e intelectual).
Dados da obra:
“A
História Sem Fim” conta a aventura de um garoto solitário que através das
páginas de um livro passa para o reino da fantasia. Nesta terra imaginária,
numa busca cheia de perigos, Bastian descobre a verdadeira medida de sua
própria coragem e sua capacidade para amar.
Passagens:
Bastian
deu-se conta de que durante todo o tempo estivera olhando fixamente o livro que
o sr. Koreander tinha nas mãos e que se encontrava agora sobre a poltrona de
couro. Era como se o livro tivesse uma espécie de magnetismo que o atraía
irresistivelmente.
Aproximou-se
da poltrona, estendeu a mão devagar, e tocou o livro – e no mesmo instante
ouviu dentro de si um “clique”, como se tivesse sido pego em uma ratoeira.
Bastian teve a estranha sensação de que aquele toque desencadeara qualquer
coisa que agora devia forçosamente seguir seu curso.
... Em
suma, as paixões são tão diferentes quanto o são as pessoas.
A paixão
de Bastian Baltasar Bux eram os livros.
Quem
nunca passou tardes inteiras diante de um livro com as orelhas ardendo e o
cabelo caído sobre o rosto, esquecido de tudo o que o rodeia e sem se dar conta
de que está com fome ou com frio...
Quem
nunca se escondeu embaixo dos cobertores lendo um livro à luz de uma lanterna,
depois de o pai ou a mãe ou qualquer outro adulto lhe ter apagado a luz, com o
argumento bem-intencionado de que já é hora de ir para a cama, pois no dia
seguinte é preciso levantar cedo...
Quem
nunca chorou, às escondidas ou na frente de todo mundo, lágrimas amargas porque
uma história maravilhosa chegou ao fim e é preciso dizer adeus às personagens
na companhia das quais se viveram tantas aventuras, que foram amadas e
admiradas, pelas quais se temeu ou ansiou, e sem cuja companhia a vida parece
vazia e sem sentido...
Quem não
conhece tudo isto por experiência própria provavelmente não poderá compreender
o que Bastian fez em seguida.
Olhou
fixamente o título do livro e sentiu, ao mesmo tempo, arrepios de frio e uma
sensação de calor. Ali estava uma coisa com a qual ele já havia sonhado muitas
vezes, que tinha desejado muitas vezes desde que dele se apoderara aquele
paixão secreta: uma história que nunca acabasse! O livro dos livros!
Tinha de
o conseguir a qualquer custo!
“Gostaria
de saber”, disse para si mesmo, “o que se passa dentro de um livro quando ele
está fechado. É claro que lá dentro só há letras impressas..., mas, apesar
disso, deve acontecer alguma coisa, porque quando o abro, existe ali uma
história completa. Lá dentro há pessoas que ainda não conheço e toda a espécie
de aventuras, feitos e combates – e muitas vezes há tempestades no mar, ou
alguém vai a países e cidades exóticos. Tudo isso, de algum modo, está dentro
do livro. É preciso lê-lo para o saber, é claro. Mas antes disso, já está lá
dentro. Gostaria de saber como...”
Não
gostava dos livros que, com mau humor e acidamente, narravam acontecimentos
absolutamente vulgares. Conhecia muito bem tudo isso da sua vida real, por isso
não precisava ler essas coisas. Além disso, detestava quando queriam
convencê-lo a fazer alguma coisa. E esses livros queriam sempre convencer as
pessoas de alguma coisa, de uma maneira mais ou menos óbvia. Bastian preferia
os livros emocionantes, ou divertidos, ou que falavam à imaginação: livros que
contavam as aventuras fabulosas de criaturas fantásticas e em que se podia
imaginar tudo o que se quisesse.
– Você é
novo, menino. Nós somos velhas. Se você fosse velho como nós, saberia que não
há nada senão tristeza. Veja uma coisa. Por que não haveríamos de morrer, você,
eu, a imperatriz Criança, todos, todos? Tudo é aparência, tudo é um jogo do Nada.
Tudo vai dar exatamente no mesmo. Deixe-nos em paz, menino, vá embora.
Naquele
momento, Bastian fez uma importante descoberta: podemos estar convencidos
durante muito tempo – anos talvez – de que queremos alguma coisa, se soubermos
que nosso desejo é irrealizável. Porém, se de súbito nos vemos diante da
possibilidade de este desejo ideal se transformar em realidade, passamos a
desejar apenas uma coisa: nunca tê-lo desejado.
Começaram
a ver ao longe o castelo de Horok que se erguia em meio à Floresta das
Orquídeas. Parecia efetivamente uma mão gigante, com os cinco dedos levantados
e estendidos.
– Mas há
uma coisa que tem de ficar bem clara, disse Bastian repentinamente. Estou
decidido a não voltar ao meu mundo. Ficarei para sempre em Fantasia. Sinto-me
muito bem aqui. Por isso, não me custa nada renunciar a todas as minhas
recordações. E quanto ao futuro de Fantasia, não há problemas: posso dar mil
novos nomes à Imperatriz Criança. Já não precisamos do mundo dos homens!
– Então
escute, ó Grande Sábio, a nossa pergunta: o que é Fantasia?
–
Fantasia é a História Sem Fim.
Bastian
viu que, no meio do caminho, estava sentada uma mulher que tentava apanhar as
ervilhas de um prato com uma agulha de costura.
– Como
chegaram aqui? O que fazem?, perguntou Bastian.
– Ora,
sempre tem havido seres humanos que não encontraram o caminho de volta para seu
mundo explicou Argax. Primeiro não queriam e agora... digamos... já não podem.
Passado o
perigo, todos os Iskalnari vieram outra vez para cima e recomeçaram a viagem
com seu canto e sua dança, como se nada tivesse acontecido. Sua harmonia não
fora perturbada, não se lamentaram. Nem se queixaram e não trocaram uma única
palavra sobre o acidente.
– Não,
disse um deles quando Bastian tocou no assunto. Não falta ninguém. Por que
haveríamos de nos lamentar?
O
indivíduo não contava para eles. E, dado que eram todos iguais, ninguém era
insubstituível.