Breve relato do autor:
Patrícia Melo é roteirista, dramaturga e escritora, e em 1999 a Time Magazine a incluiu entre os 50 líderes latino-americanos do novo milênio. É autora de Acqua Toffana, O matador – vencedor do Prêmio Deux Océans e Deutsch Krimi, Elogio da mentira, Inferno – vencedor do Prêmio Jabuti, Valsa Negra, Mundo perdido e Jonas e o copromanta. Ladrão de Cadáveres é o seu oitavo romance.
Dados da obra:
Em Ladrão de cadáveres, o
narrador-protagonista do romance é um ex-gerente de uma central de
telemarketing, despedido depois de agredir uma funcionária que acabou cometendo
suicídio. Deprimido, ele troca São Paulo por Corumbá a convite de um primo. A
trama começa quando o protagonista testemunha a queda de um avião no rio
Paraguai. Dentro da cabine, o piloto está morto. Ao lado do corpo, uma mochila
com um pacote de cocaína. A partir daí, o que se vê é o despertar do pior lado
de um ser humano, em uma história que mistura ganância, crime, sexo e mentiras.
Passagens:
A primeira coisa que
me ocorreu naquele momento foi que a gente nunca entende como um cidadão
responsável e trabalhador saca uma arma e mata um motorista numa briga de
trânsito. É muito simples, na verdade. Acontece da mesma forma que eu estapeei
minha funcionária. A arma está ali, no porta-luvas. De repente, um rapaz te
fecha num cruzamento, você salta do carro e dá um tiro na testa dele. É simples
assim.
Mais do que a imagem
do cadáver abandonado no rio, o que me angustiava era pensar no que se passava
no interior daquela casa. Temos certeza de que ele está bem, dissera a namorada
na televisão. A mãe chorando. Disso eu entendia, câmbio. De mães que se acabam
assim, podres de tanto chorar. Antes de aprender que as pessoas morrem, aprendi
que elas desaparecem. Saem de casa e evaporam. Nos deixam atônitos, observando
a cama vazia, que é quase um grito, uma porrada, pela manhã. Você sonha com
elas todas as noites. Sonha que elas estão vivas, sonha que elas telefonam,
sonha que elas voltam para casa. São sempre os mesmos sonhos, você acaba mesmo
acreditando que elas estão vivas. E tem também as pesquisas, que dizem que
setenta por cento dos desaparecidos voltam. Você pode até não acreditar mais em
Deus, mas acredita nas pesquisas. Agarra-se àquelas porcentagens como se fossem
uma oração. E aqueles números, mais aqueles sonhos, fazem com que aquela pessoa
vire uma espécie de morto-vivo. Um zumbi. Tudo isso eu conhecia muito bem.
... O que importava
se eu abandonara o cadáver no rio? Não matei ninguém, câmbio. Ainda que tivesse
arrancado o rapaz do avião e o carregado no lombo até a cidade, nada iria
mudar. Estaria morto do mesmo jeito. Todos vamos morrer um dia. Que importava
se eu tinha afanado a cocaína? Que atire a primeira pedra, câmbio. Todos nós
roubamos alguma coisa, em algum momento. Quase todos. Pelo menos uma vez.
Ou vamos roubar. O
Brasil é cheio de gente escrota, essa é a verdade.
... Na vida real,
você não entra. Em compensação, faz coisas piores. Você assalta um cadáver.
Você contrata um índio fodido para vender o pó que roubou do cadáver. Fode-se
com a mulher do seu primo. Você faz tudo isso porque acha que pode cometer um
erro, só um, mais um só, e mais outro, só mais uma cagada de nada e depois é só
voltar e continuar o seu caminho, o seu filme, porque a trilha da vida continua
lá, imóvel, esperando você fazer suas cagadas para depois voltar.
Não havia ninguém na
igreja. Só o frescor, a penumbra, e ela, ajoelhada, rezando. Fiquei com pena,
com vontade de encurtar o caminho que ela teria de percorrer. Pensei que se eu
contasse que o rapaz estava morto, se a levasse lá e mostrasse o cadáver e ela
o enterrasse como manda o figurino, com velório e flores, se ela chorasse no
túmulo, não teria, como minha mãe, que manter a caçarola quente por muito
tempo. A morte, crua, não é o mais difícil. Pior é o mistério. A dúvida. Eles é
que acabam conosco.
Eu mesmo me sentia
contaminado. Na minha opinião, era também um surto o que estávamos vivendo em
Corumbá. De outro tipo, mas igualmente perverso. Em todos os jornais, no rádio,
na televisão, só se falava no acidente do piloto. A diferença é que ninguém se
matava. Dava pena ver a dona Lu. Emagreceu um bocado. Eu tinha praticamente que
carregá-la até o carro, nas vezes em que íamos para a igreja. E nessas
ocasiões, os urubus a cercavam, quase pediam autógrafo. Está doendo muito? ,
era o que eles queriam saber. Quanto dói ter um filho desaparecido? Bandos
atrás de carniça. Gostavam de sentir dó daquela mulher rica e bonita, que
estava bem fodida, apesar de ser rica e bonita. Sentiam-se bem com isso. A
desgraça de dona Lu permitia que eles se sentissem piedosos. Esse, aliás, é
outro sintoma da epidemia. A bondade patológica que surge na comunidade. Em vez
da febre e da diarreia, de repente, aparece esse sintoma, a compaixão.
Pensei no quanto
minha própria mãe teria sido feliz se um dia alguém tivesse nos telefonado do
necrotério, se tivéssemos ido até lá, reconhecido o cadáver do meu pai, para
depois enterrá-lo e acabar com o assunto. É esse o significado da palavra
enterrar. Colocar ponto final. Enterrem os mortos e cuidem dos vivos, quem
disse isso? Enquanto não enterramos os mortos, os vivos ficam lá, sangrando.
Acabam conosco os mortos. Com a dona Lu. Eu havia notado que nos últimos dias,
ela não se importava mais em encontrar o filho vivo. O cadáver do filho já
bastava. Estava naquele ponto em que o cadáver era melhor que nada. Antes o
cadáver. Era assim mesmo que as coisas se davam. Eu sabia disso por experiência
própria, há momentos que até uma péssima notícia é bem-vinda. Achamos um braço.
Um pedaço do crânio. Achamos o assassino. A cova. Qualquer coisa serve.
Uma coisa é você
saber que o presidente é corrupto, que o governador é corrupto, que o
secretário é corrupto. Mas o cara que trabalha com você há sete anos? Ali do
seu lado? Que almoça, que janta com você? Que frequenta sua casa? O Joel? Que
me ensinou tudo? Eu colocaria minha mão no fogo por Joel. Se Joel, o
Tranqueira, que me chama de Doçura, é corrupto, se é assim, todo mundo naquela
delegacia deve levar grana. Hoje em dia, não existe mais um ladrão sem
parceiro, corrupção é um negócio em rede, uma matilha. Por que então me
preocupar se meu namorado rouba um quilo de pó de alguém que já morreu?...
... Você nunca ouvir
dizer que “o homem só começa a ser homem quando enterra seus cadáveres”? É a
mais pura verdade. Não há civilização sem os rituais da morte. Sem enterros.
Sem eles, voltamos para a caverna. Sem eles, você não honra o defunto, a
memória, você não presta homenagem a ele, você não tem túmulo para visitar.
Viramos uma espécie de zumbi se deixamos nossos cadáveres por aí, apodrecendo
sobre a Terra. No plano pessoal, a tragédia é maior. Lembro que num dia de
finados, encontrei minha mãe chorando na cozinha e ela me disse: “se ao menos
houvesse um túmulo para visitarmos.” Minha mãe não sofria porque meu pai tinha
morria. Sofria porque não podia decretar aquela morte.
Durante muito tempo,
acreditei que a maldade era um aprendizado lento. Naqueles dias, compreendi
finalmente que é a bondade que se aprende com dificuldade, com exercícios
diários, que as pessoas, por vezes, chama de Deus ou de Buda, dependendo de
suas crenças. A maldade, essa, já nascemos com ela inoculada dentro de nós,
como um vírus inativo, que apenas espera o momento de aflorar. De outra forma,
como explicar o meu comportamento e o de Sulamita? Como explicar que duas
pessoas boas possam agir de forma tão escabrosa?
Quem não passou por
isso, expliquei para Sulamita mais de cem vezes, não entende.
Você não faz a mínima ideia do que é uma morte sem corpo. Claro que faço, ela
disse, é como um crime sem corpo: não existe. É mais, eu falei, é como estar no
purgatório. Há dias em que você aceita que aquela pessoa morreu. Então você
chora e reza. Em outros, você ouve um barulho na porta e tem certeza de que ela
está voltando. Você corre para a sala e não há ninguém ali. E se o telefone
toca no meio da noite, você sai correndo, cheio de esperança. E você nunca para
de sofrer. Nem de acreditar. A vida não interessa muito, mas você também não
pode morrer completamente, porque há sempre a possibilidade da porta se abrir
ou o telefone tocar. E você quer estar ali quando isso acontecer.
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