quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Ladrão de cadáveres

Melo, Patrícia. Ladrão de cadáveres. Editora Rocco. Rio de Janeiro / RJ; 2010; 205 páginas.

Breve relato do autor:
 
Patrícia Melo é roteirista, dramaturga e escritora, e em 1999 a Time Magazine a incluiu entre os 50 líderes latino-americanos do novo milênio. É autora de Acqua Toffana, O matador – vencedor do Prêmio Deux Océans e Deutsch Krimi, Elogio da mentira, Inferno – vencedor do Prêmio Jabuti, Valsa Negra, Mundo perdido e Jonas e o copromanta. Ladrão de Cadáveres é o seu oitavo romance.
 
Dados da obra:
 
Em Ladrão de cadáveres, o narrador-protagonista do romance é um ex-gerente de uma central de telemarketing, despedido depois de agredir uma funcionária que acabou cometendo suicídio. Deprimido, ele troca São Paulo por Corumbá a convite de um primo. A trama começa quando o protagonista testemunha a queda de um avião no rio Paraguai. Dentro da cabine, o piloto está morto. Ao lado do corpo, uma mochila com um pacote de cocaína. A partir daí, o que se vê é o despertar do pior lado de um ser humano, em uma história que mistura ganância, crime, sexo e mentiras.
 
Passagens:
 
A primeira coisa que me ocorreu naquele momento foi que a gente nunca entende como um cidadão responsável e trabalhador saca uma arma e mata um motorista numa briga de trânsito. É muito simples, na verdade. Acontece da mesma forma que eu estapeei minha funcionária. A arma está ali, no porta-luvas. De repente, um rapaz te fecha num cruzamento, você salta do carro e dá um tiro na testa dele. É simples assim.
 
Mais do que a imagem do cadáver abandonado no rio, o que me angustiava era pensar no que se passava no interior daquela casa. Temos certeza de que ele está bem, dissera a namorada na televisão. A mãe chorando. Disso eu entendia, câmbio. De mães que se acabam assim, podres de tanto chorar. Antes de aprender que as pessoas morrem, aprendi que elas desaparecem. Saem de casa e evaporam. Nos deixam atônitos, observando a cama vazia, que é quase um grito, uma porrada, pela manhã. Você sonha com elas todas as noites. Sonha que elas estão vivas, sonha que elas telefonam, sonha que elas voltam para casa. São sempre os mesmos sonhos, você acaba mesmo acreditando que elas estão vivas. E tem também as pesquisas, que dizem que setenta por cento dos desaparecidos voltam. Você pode até não acreditar mais em Deus, mas acredita nas pesquisas. Agarra-se àquelas porcentagens como se fossem uma oração. E aqueles números, mais aqueles sonhos, fazem com que aquela pessoa vire uma espécie de morto-vivo. Um zumbi. Tudo isso eu conhecia muito bem.
 
... O que importava se eu abandonara o cadáver no rio? Não matei ninguém, câmbio. Ainda que tivesse arrancado o rapaz do avião e o carregado no lombo até a cidade, nada iria mudar. Estaria morto do mesmo jeito. Todos vamos morrer um dia. Que importava se eu tinha afanado a cocaína? Que atire a primeira pedra, câmbio. Todos nós roubamos alguma coisa, em algum momento. Quase todos. Pelo menos uma vez.
Ou vamos roubar. O Brasil é cheio de gente escrota, essa é a verdade.
 
... Na vida real, você não entra. Em compensação, faz coisas piores. Você assalta um cadáver. Você contrata um índio fodido para vender o pó que roubou do cadáver. Fode-se com a mulher do seu primo. Você faz tudo isso porque acha que pode cometer um erro, só um, mais um só, e mais outro, só mais uma cagada de nada e depois é só voltar e continuar o seu caminho, o seu filme, porque a trilha da vida continua lá, imóvel, esperando você fazer suas cagadas para depois voltar.

Não havia ninguém na igreja. Só o frescor, a penumbra, e ela, ajoelhada, rezando. Fiquei com pena, com vontade de encurtar o caminho que ela teria de percorrer. Pensei que se eu contasse que o rapaz estava morto, se a levasse lá e mostrasse o cadáver e ela o enterrasse como manda o figurino, com velório e flores, se ela chorasse no túmulo, não teria, como minha mãe, que manter a caçarola quente por muito tempo. A morte, crua, não é o mais difícil. Pior é o mistério. A dúvida. Eles é que acabam conosco.

Eu mesmo me sentia contaminado. Na minha opinião, era também um surto o que estávamos vivendo em Corumbá. De outro tipo, mas igualmente perverso. Em todos os jornais, no rádio, na televisão, só se falava no acidente do piloto. A diferença é que ninguém se matava. Dava pena ver a dona Lu. Emagreceu um bocado. Eu tinha praticamente que carregá-la até o carro, nas vezes em que íamos para a igreja. E nessas ocasiões, os urubus a cercavam, quase pediam autógrafo. Está doendo muito? , era o que eles queriam saber. Quanto dói ter um filho desaparecido? Bandos atrás de carniça. Gostavam de sentir dó daquela mulher rica e bonita, que estava bem fodida, apesar de ser rica e bonita. Sentiam-se bem com isso. A desgraça de dona Lu permitia que eles se sentissem piedosos. Esse, aliás, é outro sintoma da epidemia. A bondade patológica que surge na comunidade. Em vez da febre e da diarreia, de repente, aparece esse sintoma, a compaixão.
 
Pensei no quanto minha própria mãe teria sido feliz se um dia alguém tivesse nos telefonado do necrotério, se tivéssemos ido até lá, reconhecido o cadáver do meu pai, para depois enterrá-lo e acabar com o assunto. É esse o significado da palavra enterrar. Colocar ponto final. Enterrem os mortos e cuidem dos vivos, quem disse isso? Enquanto não enterramos os mortos, os vivos ficam lá, sangrando. Acabam conosco os mortos. Com a dona Lu. Eu havia notado que nos últimos dias, ela não se importava mais em encontrar o filho vivo. O cadáver do filho já bastava. Estava naquele ponto em que o cadáver era melhor que nada. Antes o cadáver. Era assim mesmo que as coisas se davam. Eu sabia disso por experiência própria, há momentos que até uma péssima notícia é bem-vinda. Achamos um braço. Um pedaço do crânio. Achamos o assassino. A cova. Qualquer coisa serve.

Uma coisa é você saber que o presidente é corrupto, que o governador é corrupto, que o secretário é corrupto. Mas o cara que trabalha com você há sete anos? Ali do seu lado? Que almoça, que janta com você? Que frequenta sua casa? O Joel? Que me ensinou tudo? Eu colocaria minha mão no fogo por Joel. Se Joel, o Tranqueira, que me chama de Doçura, é corrupto, se é assim, todo mundo naquela delegacia deve levar grana. Hoje em dia, não existe mais um ladrão sem parceiro, corrupção é um negócio em rede, uma matilha. Por que então me preocupar se meu namorado rouba um quilo de pó de alguém que já morreu?...

... Você nunca ouvir dizer que “o homem só começa a ser homem quando enterra seus cadáveres”? É a mais pura verdade. Não há civilização sem os rituais da morte. Sem enterros. Sem eles, voltamos para a caverna. Sem eles, você não honra o defunto, a memória, você não presta homenagem a ele, você não tem túmulo para visitar. Viramos uma espécie de zumbi se deixamos nossos cadáveres por aí, apodrecendo sobre a Terra. No plano pessoal, a tragédia é maior. Lembro que num dia de finados, encontrei minha mãe chorando na cozinha e ela me disse: “se ao menos houvesse um túmulo para visitarmos.” Minha mãe não sofria porque meu pai tinha morria. Sofria porque não podia decretar aquela morte.
 
Durante muito tempo, acreditei que a maldade era um aprendizado lento. Naqueles dias, compreendi finalmente que é a bondade que se aprende com dificuldade, com exercícios diários, que as pessoas, por vezes, chama de Deus ou de Buda, dependendo de suas crenças. A maldade, essa, já nascemos com ela inoculada dentro de nós, como um vírus inativo, que apenas espera o momento de aflorar. De outra forma, como explicar o meu comportamento e o de Sulamita? Como explicar que duas pessoas boas possam agir de forma tão escabrosa?
 
Quem não passou por isso, expliquei para Sulamita mais de cem vezes, não entende. Você não faz a mínima ideia do que é uma morte sem corpo. Claro que faço, ela disse, é como um crime sem corpo: não existe. É mais, eu falei, é como estar no purgatório. Há dias em que você aceita que aquela pessoa morreu. Então você chora e reza. Em outros, você ouve um barulho na porta e tem certeza de que ela está voltando. Você corre para a sala e não há ninguém ali. E se o telefone toca no meio da noite, você sai correndo, cheio de esperança. E você nunca para de sofrer. Nem de acreditar. A vida não interessa muito, mas você também não pode morrer completamente, porque há sempre a possibilidade da porta se abrir ou o telefone tocar. E você quer estar ali quando isso acontecer.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.