segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O mar

Banville, John. O mar. Editora Nova Fronteira; Rio de Janeiro / RJ; 2007; 222 págs.

Breve relato do autor:
 
John Banville é autor irlandês cuja obra combinam-se dicção exuberante, marcada pelo lirismo e por jogos de linguagem, com enredos complexos. Seu maior sucesso O mar (2005) lhe rendeu o Man Booker Prize. Sob o pseudônimo de Benjamin Black, publicou ainda mais sete romances policiais que compõem uma intrincada teia de adultérios envolvendo o protagonista.
 
Dados da obra:
 
Em O mar, John Banville constrói uma narrativa emocionante, trabalhando a linguagem como um grande artista. O livro conta uma história com vários momentos, na qual o narrador, Max Morden, procura viver o presente e o futuro no passado, na busca por recuperar-se da constante presença da morte.
 
Passagens:
 
Mr. Todd se virou um pouco na cadeira, remexendo os documentos contidos naquela pasta de papelão rosa-claro que me fez lembrar das frias manhãs de volta às aulas, depois das férias de verão, da sensação dos livros novos e do cheiro de certo modo repleto de presságios da tinta e dos lápis recém-apartados. Incrível como a mente vagueia, mesmo nas situações mais intensas...

Acabei de perceber que dia é hoje. Está fazendo exatamente um ano daquela visita que Anna e eu fomos obrigados a fazer a Mr. Todd em seu consultório. Que coincidência... Ou talvez não. Existem coincidências no reino de Plutão, por cujos ermos vaguei perdido, como um Orfeu sem lira? E já se passaram doze meses! Devia ter escrito um diário. O meu diário de um ano catastrófico.
 
Cismei que ia entrar naquela casa, andar por onde Mrs. Grace andava, sentar onde ela sentava, tocar nos objetos em que ela tocava. Para conseguir o meu intento, decidi me aproximar de Chloe e de seu irmão. Isso era fácil, como são essas coisas na infância, mesmo para uma criança retraída como eu. Nessa idade não precisamos puxar conversa nem lançar mão de qualquer ritual para uma aproximação ou um encontro educados; basta ficar por perto e esperar para ver o que acontece...
 
... Portanto, o que antevia em termos de futuro era, na verdade, se é que a verdade tem alguma coisa a ver com isso, uma representação daquilo que só podia ser um passado imaginado. Pode-se dizer que eu não estava exatamente antecipando um futuro, mas, antes, assumindo uma atitude nostálgica com relação a ele, um vez que, nos meus sonhos, o que estava por vir era aquilo que já tinha passado. E, de repente, isso vem mostrar, agora, como alguma coisa de certa forma significativa. Será que era mesmo pelo futuro que eu estava ansiando, ou seria algo que estivesse além dele?

 .. Mas não havia dor alguma, ainda não; só aquilo que ela descrevia como uma sensação generalizada de desassossego, uma espécie de efervescência interior, como se o seu corpo desconcertado estivesse vasculhando dentro de si mesmo, tentando desesperadamente armar defesas contra um invasor que já havia conseguido penetrar ali por alguma passagem secreta, estalando as suas negras tenazes.

Eu me lembro de Anna; a nossa filha, inimagináveis gerações. Eu me lembro de Anna; a nossa filha, Claire, vai se lembrar de Anna e de mim; depois, Claire vai embora e haverá aqueles que vão se lembrar dela, mas não de nós, e esta será a nossa dissolução final. Alguma coisa de nós vai permanecer, sem dúvida: uma fotografia desbotada, uma mecha de cabelo, algumas impressões digitais, uma garoa de átomos no ar do quarto onde demos o último suspiro. Mesmo assim, nada disso será nós, nada disso será aquilo que somos e que fomos, mas apenas a poeira dos mortos.

Em outras épocas, bem que gostava do que via no espelho, mas isso não acontece mais. Agora, fico espantado, mais do que espantado, diante do rosto que surge ali, de forma tão abrupta, e que nunca é o que estava esperando encontrar. Fui substituído por uma paródia de mim mesmo, uma figura lamentavelmente desgrenhada, usando uma máscara de halloween feita de borracha flácida e de um cinza meio rosado, que tem apenas uma ligeira semelhança com a lembrança do que eu era antes e que, só de teimoso, insisto em conservar na memória.
 
... A escada era mais íngreme, o patamar mais acanhado, a janela do banheiro não dava para a rua, como eu pensava, mas sim para os fundos, para o lado do Campo. Tive uma sensação quase de pânico quando o real, esse real indelicadamente complacente, se apoderou das coisas de que eu pensava me lembrar e deu a elas o formato que bem quis. Algo precioso estava se desmanchando e escorria por entre os meus dedos. E, no entanto, com que facilidade deixei que aquilo tudo se fosse... O passado, quero dizer, o passado de verdade, tem muito menos importância do que acreditamos...

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