Gorz, André. Carta
a D. Cosac Naify. São Paulo / SP; 2008; 80 páginas.
Breve
relato do autor:
André
Gorz foi um filósofo austro-francês, também conhecido pelo pseudônimo Michel Bosquet.
Dados da obra:
Carta a D. é o último livro de Gorz,
escrito para homenagear sua mulher, Dorine, com quem partilhou a vida por quase
60 anos. O casal cometeu suicídio em 22 de setembro de 2007; os corpos foram
encontrados um ao lado do outro, e um cartaz, na porta de sua casa, pedindo que
a polícia fosse avisada.
Passagens:
Você está
para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que
quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta
e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo,
carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu
corpo contra o meu é capaz de preencher.
Não
tínhamos pressa. Eu despia o seu corpo com cautela. Descobri, miraculosa
coincidência do real com o imaginário, a Vênus de Milo tornada carne. O brilho
nacarado do pescoço iluminava o seu rosto. Mudo, contemplei longamente esse
milagre de vigor e de doçura. Compreendi com você que o prazer não é algo que
se tome ou que se dê. Ele é um jeito de dar-se e de pedir ao outro a doação de
si. Nós nos doamos inteiramente um ao outro.
Nós não
suspeitávamos que eu ainda precisaria de mais seis anos para terminar o Essai. Teria eu perseverado se soubesse
disso? “Sem dúvida”, você sempre me disse. O principal objetivo do escritor não
é o que ele escreve. Sua necessidade
primeira é escrever. Escrever, isto é, ausentar-se do mundo e de si mesmo para,
eventualmente, fazer disso a matéria de elaborações literárias. É apenas num
segundo momento que se põe a questão do “tema” a ser tratado. O tema é a
condição necessária, necessariamente contingente da produção de escritos. Não importa
qual tema é o melhor desde que ele permita escrever. Durante seis anos, até
1946, eu mantive um diário. Escrevia para conjurar a angústia. Não importava o
quê; eu era um escrevedor. O escrevedor só se tornará um escritor quando a sua
necessidade de escrever for sustentada por um tema que permita e exija que essa
necessidade se organize num projeto. Somos milhões a passar a vida escrevendo,
sem nunca terminar nem publicar nada...
Tinha
algo de você em tudo o que fazia. A penúria lhe dava asas. A mim, ela me
deprimia.
Eu
necessitava de teoria para estruturar meu pensamento, e argumentava com você
que um pensamento não estruturado sempre ameaça naufragar no empirismo e na
insignificância. Você respondia que a teoria sempre ameaça se tornar um
constrangimento que nos impede de perceber a complexidade movediça da
realidade.
... a
vontade de não ser Nada se confunde com a de ser Tudo. No fim do Vieillissement se encontra esta
autoexortação: “É preciso aceitar ser finito: estar aqui e em nenhum outro lugar,
fazer isto e não outra coisa, agora e não sempre ou nunca [...]; ter apenas
esta vida.
...
Estava consciente de que, “quando tudo tiver sido dito, tudo ainda ficará por
dizer” – em outras palavras, é o dizer
que importa, não o dito –, isso que
eu tinha escrito me interessava menos do que aquilo que eu poderia vir a
escrever em seguida. Acho que isso é verdade para todo escrevedor / escritor.
...
Inscrevi o seu nome na pedra com um buril. Aquela casa era mágica. Todos os
espaços tinham uma forma trapezoidal. As janelas do quarto davam para a copa
das árvores. Na primeira noite nós não dormimos. Um escutava a respiração do
outro. Depois um rouxinol se pôs a cantar, e um segundo, mais longe, a lhe
responder. Nós nos falamos muito pouco. Passei aquele dia cavando e, de tempos
em tempos, levantava os olhos para a janela do quarto. Você ficava ali, imóvel,
o olhar fixo ao longe. Tenho certeza de que você trabalhava para domesticar a
morte, para combatê-la sem medo. Estava tão bela e resoluta em seu silêncio que
eu não seria capaz de imaginar que você pudesse renunciar à vida.
... Eu
havia chegado à idade em que a gente se pergunta o que fez da própria vida, o
que queria ter feito dela. Tinha impressão de não ter vivido a minha vida, de tê-la sempre observado à distância, de só
ter desenvolvido um lado de mim mesmo, e de ser pobre como pessoa. Você era e
sempre tinha sido mais rica que eu. Você se desenvolvia em todas as suas
dimensões. Estava firme em sua vida, enquanto eu sempre me apressara a passar à
tarefa seguinte, como se a nossa vida só fosse começar mais tarde.
À noite
eu vejo, às vezes, a silhueta de um homem que, numa estrada vazia e numa
paisagem deserta, anda atrás de um carro fúnebre. Eu sou esse homem. É você que
esse carro leva. Não quero assistir à sua cremação; nem quero receber a urna
com as suas cinzas. Ouço a voz de Kathleen
Ferrier cantando: “Die Welt ist leer, Ich
will nicht leben mehr”*, e desperto. Eu vigio a sua respiração, minha mão toca você. Nós
desejaríamos não sobreviver um à morte do outro. Dissemo-nos sempre, por
impossível que seja, que, se tivéssemos uma segunda vida, iríamos querer
passá-la juntos.
*Em
alemão, “O mundo está vazio, não quero mais viver”.
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