terça-feira, 17 de setembro de 2013

O mapa do tempo

Palma, Félix J. O mapa do tempo. Intrínseca. Rio de Janeiro / RJ; 2010; 472 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
Félix J. Palma é um escritor espanhol, conhecido pelos livros “O Mapa do Tempo” e o “Mapa do Céu”. Suas principais influências são de autores de língua inglesa, mas tem uma forte identificação com o argentino Júlio Cortázar.
 
Dados da obra:
 
O autor de A máquina do tempo, H. G. Wells, é um dos protagonistas da obra, que reuniu personagens como Jack, o Estripador; Júlio Verne; o Homem Elefante; o Homem Invisível; Bram Stoker, o criador de Drácula, e o romancista Henry James, em uma trama que mistura romance e aventura na Londres vitoriana. Uma viagem literária e tanto.
 
Passagens:
 
Recordava tudo de maneira extraordinariamente vívida, como se entre eles não houvesse um abismo de oito anos, e às vezes achava aquelas memórias até mais bonitas que os fatos verdadeiros. Que estranha alquimia fazia essas cópias parecerem mais extraordinárias que o original? A resposta era óbvia: a passagem do tempo, que transforma o borbulhar do presente em um quadro terminado e inalterável chamado passado, uma tela que o homem sempre pinta às cegas, com pinceladas erráticas que só adquirem sentido ao afastar-se dela o suficiente para admirá-la em seu conjunto.
 
... Andrew teve a sensação de que a natureza se mobilizara para realizar aquele truque de prestidigitação diante de um único espectador. A partir de então, ficou convencido de que o universo fazia os vulcões entrarem em erupção para reverência da humanidade, mas se esmerava na hora de se comunicar com um punhado de eleitos, indivíduos que como ele escrutinavam a realidade como se fosse uma folha de papel pintado que encobria uma outra coisa.
 
Todo mundo sabe que um objeto tem três dimensões – explicou Charles, pegando o chapéu e girando-o nas mãos com gestos de ilusionista: – altura, largura e comprimento. Mas para que esse objeto exista de verdade, para que este chapéu faça parte desta realidade em que nos encontramos agora, precisa ter mais uma coisa: duração. Além de estender-se no espaço, precisa perdurar no tempo.
 
... Nela aparecia uma fotografia dos seres que estavam logo abaixo. A manchete falava do irrefreável avanço do exército de autômatos e acabava pedindo aos leitores que não perdessem a fé na resistência humana, liderada pelo bravo capitão Derek Schackleton. Porém, o que mais os surpreendeu foi a data do jornal. O exemplar a que pertencia aquela folha extraviada havia sido impresso em 3 de abril do ano 2000.
 
... Os que labutam nos jornais e suplementos literários deveriam lembrar que toda obra é, em geral, uma união de esforço e esperança, a encarnação de um empenho solitário, de um sonho às vezes longamente incubado, quando não uma aposta desesperada destinada a dar sentido à existência, antes de nela cuspirem sem dó nem piedade, instalados em suas confortáveis atalaias. Mas não poderiam enfrentá-lo. Não, certamente não. Não conseguiriam deixá-lo confuso, porque ele tinha o cesto.
 
... e se não tivesse escorregado, aquele Wells de oito anos não quebraria a tíbia ao bater numa das cavilhas que pendiam as cordas da barraca de cerveja; e se não houvesse fraturado a perna, sendo obrigado a passar o verão inteiro na cama, não teria o álibi perfeito para entregar-se à única distração a seu alcance naquelas circunstâncias: a leitura, entretenimento insano que em qualquer outra situação levantaria as suspeitas de seus pais, impedindo-o de descobrir Dickens, Swift ou Washington Irving, escritores que plantaram uma semente em seu espírito que, com o passar do tempo e apesar das limitadas regas e cuidados que pôde lhe proporcionar, terminaria germinando.
 
Merreick era o tipo de leitor que conseguia esquecer com uma terrível facilidade que existe uma mão puxando os fios dos personagens que dançam nesses teatrinhos que são os romances. Na infância, ele também tinha sido um leitor assim. Mas um dia decidiu ser escritor, e desse momento em diante foi impossível mergulhar nas histórias dos livros com o mesmo abandono inocente: tinha compreendido que os atos e impressões dos personagens não pertencem a eles. Todos os seus pensamentos e ações obedecem na verdade ao ditame de um quarto, manipula as peças que havia disposto sobre o tabuleiro, geralmente com uma enorme frieza que não corresponde às emoções que pretende provocar nos leitores.
 
Depois de dizer isso, lembrou-se do que Luciano de Samósata afirma em Uma história verídica:  “Escreve sobre o que não vi, nem constatei, nem soube por outros, e também sobre o que não existe nem tem fundamento para existir”, uma frase que lhe ficou na memória porque resumia perfeitamente sua ideia de literatura. De fato, como disse o anfitrião, ele só se interessava em escrever sobre assuntos impossíveis. Para os outros já havia Dickens, quis acrescentar, mas não o fez. Treves lhe dissera que Merck era um grande leitor. Não queria ofendê-lo caso Dickens fosse um de seus autores preferidos.
 
... Os senhores já se perguntaram o que torna os homens responsáveis? Eu lhes direi: o fato de terem uma única oportunidade de fazer cada coisa. Se existissem máquinas que nos permitissem corrigir até nossos erros mais estúpidos, viveríamos em um mundo cheio de irresponsáveis...
 
... Quando criança, o pai a levara para ver o Escrivão, um dos autômatos criados pelo célebre relojoeiro suíço Pierre Jaquet Droz. Claire ainda se lembrava daquele menino de rosto bochechudo e compungido elegantemente vestido, que, sentado diante de uma carteira, molhava a pena no tinteiro e a fazia correr sobre o papel. O boneco forjava cada letra com a inquietante parcimônia de quem vive fora do tempo e, volta e meia, até fazia uma parada na escritura e olhava ensimesmado para o vazio, como se aguardasse uma nova lufada de inspiração. O olhar absorto do boneco abalou a pequena Claire para o resto da vida, ao imaginar os monstruosos pensamentos que aquele estranho ser poderia abrigar...
 
... Lembrava perfeitamente do semblante pálido, as feições um tanto ariscas, os lábios brilhantes e bem-desenhados, o cabelo azeviche, o porte garbosamente frágil, a voz. E se lembrava do olhar. Lembrava-se, sobretudo, da maneira como o olhara, com uma espécie de entusiasmo. Nenhuma mulher jamais olhara assim para ele. Nunca.
 
... Por mais que a vida de meu pai parecesse invejável vista de longe, eu sabia que não havia sido plena, e que a minha não teria melhor sorte. Estava convencido de que também acabaria morrendo com a mesma expressão de insatisfação nos lábios. Imagino que foi por isso que me refugiei na leitura, para fugir daquela existência monótona e previsível que se desdobrava diante de mim. Todos chegam à leitura por algum motivo, não acha? Como foi em seu caso, senhor Wells?
– Fraturei a tíbia aos oito anos – disse o escritor com visível apatia.
 
... E se os viajantes mergulhassem no futuro o suficiente para encontrar a extremidade, o fim do barbante branco. Ou talvez sim. E se os viajantes mergulhassem no futuro o suficiente para encontrar a extremidade, o fim do barbante como o inventor de seu romance havia tentado fazer? Mas existiria tal coisa? O tempo terminaria em algum ponto ou continuaria eternamente? Neste caso, o final devia localizar-se no instante em que o homem se extinguisse e não restasse nenhuma  outra espécie no planeta, pois o que era o tempo sem ninguém para medi-lo, sem nada que o acusasse sua passagem? O tempo só se revelava nas folhas secas, nas feridas que cicatrizavam, no caruncho que devorava, na ferrugem que se espalhava, nos corações que se cansavam. Se não houvesse ninguém para mareá-lo, o tempo não era nada, absolutamente nada.
 
... Definitivamente, se queria ser um escritor brilhante, e não apenas um narrador competente e engenhoso,  precisava exigir de si mesmo esforços maiores que aquelas fabulazinhas que executava em quatro dias. Sim, a literatura era mais, muito mais. A verdadeira literatura precisava mexer com o leitor, alterá-lo, mudar sua percepção das coisas, empurrá-lo pelas escarpas da clarividência.

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