Palma, Félix J. O mapa do tempo. Intrínseca. Rio de Janeiro / RJ; 2010; 472 páginas.
Breve
relato do autor:
Félix J. Palma é um escritor espanhol, conhecido
pelos livros “O Mapa do Tempo” e o “Mapa do Céu”. Suas principais influências
são de autores de língua inglesa, mas tem uma forte identificação com o
argentino Júlio Cortázar.
Dados da obra:
O autor de A
máquina do tempo, H. G. Wells, é um dos protagonistas da obra, que reuniu
personagens como Jack, o Estripador; Júlio Verne; o Homem Elefante; o Homem
Invisível; Bram Stoker, o criador de Drácula,
e o romancista Henry James, em uma trama que mistura romance e aventura na
Londres vitoriana. Uma viagem literária e tanto.
Passagens:
Recordava
tudo de maneira extraordinariamente vívida, como se entre eles não houvesse um
abismo de oito anos, e às vezes achava aquelas memórias até mais bonitas que os
fatos verdadeiros. Que estranha alquimia fazia essas cópias parecerem mais
extraordinárias que o original? A resposta era óbvia: a passagem do tempo, que
transforma o borbulhar do presente em um quadro terminado e inalterável chamado
passado, uma tela que o homem sempre pinta às cegas, com pinceladas erráticas
que só adquirem sentido ao afastar-se dela o suficiente para admirá-la em seu
conjunto.
...
Andrew teve a sensação de que a natureza se mobilizara para realizar aquele
truque de prestidigitação diante de um único espectador. A partir de então,
ficou convencido de que o universo fazia os vulcões entrarem em erupção para
reverência da humanidade, mas se esmerava na hora de se comunicar com um
punhado de eleitos, indivíduos que como ele escrutinavam a realidade como se
fosse uma folha de papel pintado que encobria uma outra coisa.
Todo
mundo sabe que um objeto tem três dimensões – explicou Charles, pegando o
chapéu e girando-o nas mãos com gestos de ilusionista: – altura, largura e
comprimento. Mas para que esse objeto exista de verdade, para que este chapéu
faça parte desta realidade em que nos encontramos agora, precisa ter mais uma
coisa: duração. Além de estender-se no espaço, precisa perdurar no tempo.
... Nela
aparecia uma fotografia dos seres que estavam logo abaixo. A manchete falava do
irrefreável avanço do exército de autômatos e acabava pedindo aos leitores que
não perdessem a fé na resistência humana, liderada pelo bravo capitão Derek
Schackleton. Porém, o que mais os surpreendeu foi a data do jornal. O exemplar
a que pertencia aquela folha extraviada havia sido impresso em 3 de abril do ano
2000.
... Os
que labutam nos jornais e suplementos literários deveriam lembrar que toda obra
é, em geral, uma união de esforço e esperança, a encarnação de um empenho
solitário, de um sonho às vezes longamente incubado, quando não uma aposta
desesperada destinada a dar sentido à existência, antes de nela cuspirem sem dó
nem piedade, instalados em suas confortáveis atalaias. Mas não poderiam
enfrentá-lo. Não, certamente não. Não conseguiriam deixá-lo confuso, porque ele
tinha o cesto.
... e se
não tivesse escorregado, aquele Wells de oito anos não quebraria a tíbia ao
bater numa das cavilhas que pendiam as cordas da barraca de cerveja; e se não
houvesse fraturado a perna, sendo obrigado a passar o verão inteiro na cama,
não teria o álibi perfeito para entregar-se à única distração a seu alcance
naquelas circunstâncias: a leitura, entretenimento insano que em qualquer outra
situação levantaria as suspeitas de seus pais, impedindo-o de descobrir
Dickens, Swift ou Washington Irving, escritores que plantaram uma semente em
seu espírito que, com o passar do tempo e apesar das limitadas regas e cuidados
que pôde lhe proporcionar, terminaria germinando.
Merreick
era o tipo de leitor que conseguia esquecer com uma terrível facilidade que
existe uma mão puxando os fios dos personagens que dançam nesses teatrinhos que
são os romances. Na infância, ele também tinha sido um leitor assim. Mas um dia
decidiu ser escritor, e desse momento em diante foi impossível mergulhar nas
histórias dos livros com o mesmo abandono inocente: tinha compreendido que os
atos e impressões dos personagens não pertencem a eles. Todos os seus
pensamentos e ações obedecem na verdade ao ditame de um quarto, manipula as
peças que havia disposto sobre o tabuleiro, geralmente com uma enorme frieza que
não corresponde às emoções que pretende provocar nos leitores.
Depois de
dizer isso, lembrou-se do que Luciano de Samósata afirma em Uma história verídica: “Escreve sobre o que não vi, nem constatei,
nem soube por outros, e também sobre o que não existe nem tem fundamento para
existir”, uma frase que lhe ficou na memória porque resumia perfeitamente sua
ideia de literatura. De fato, como disse o anfitrião, ele só se interessava em
escrever sobre assuntos impossíveis. Para os outros já havia Dickens, quis
acrescentar, mas não o fez. Treves lhe dissera que Merck era um grande leitor.
Não queria ofendê-lo caso Dickens fosse um de seus autores preferidos.
... Os
senhores já se perguntaram o que torna os homens responsáveis? Eu lhes direi: o
fato de terem uma única oportunidade de fazer cada coisa. Se existissem
máquinas que nos permitissem corrigir até nossos erros mais estúpidos,
viveríamos em um mundo cheio de irresponsáveis...
...
Quando criança, o pai a levara para ver o Escrivão, um dos autômatos criados
pelo célebre relojoeiro suíço Pierre Jaquet Droz. Claire ainda se lembrava
daquele menino de rosto bochechudo e compungido elegantemente vestido, que,
sentado diante de uma carteira, molhava a pena no tinteiro e a fazia correr
sobre o papel. O boneco forjava cada letra com a inquietante parcimônia de quem
vive fora do tempo e, volta e meia, até fazia uma parada na escritura e olhava
ensimesmado para o vazio, como se aguardasse uma nova lufada de inspiração. O
olhar absorto do boneco abalou a pequena Claire para o resto da vida, ao
imaginar os monstruosos pensamentos que aquele estranho ser poderia abrigar...
...
Lembrava perfeitamente do semblante pálido, as feições um tanto ariscas, os
lábios brilhantes e bem-desenhados, o cabelo azeviche, o porte garbosamente
frágil, a voz. E se lembrava do olhar. Lembrava-se, sobretudo, da maneira como
o olhara, com uma espécie de entusiasmo. Nenhuma mulher jamais olhara assim
para ele. Nunca.
... Por
mais que a vida de meu pai parecesse invejável vista de longe, eu sabia que não
havia sido plena, e que a minha não teria melhor sorte. Estava convencido de
que também acabaria morrendo com a mesma expressão de insatisfação nos lábios.
Imagino que foi por isso que me refugiei na leitura, para fugir daquela
existência monótona e previsível que se desdobrava diante de mim. Todos chegam
à leitura por algum motivo, não acha? Como foi em seu caso, senhor Wells?
–
Fraturei a tíbia aos oito anos – disse o escritor com visível apatia.
... E se
os viajantes mergulhassem no futuro o suficiente para encontrar a extremidade,
o fim do barbante branco. Ou talvez sim. E se os viajantes mergulhassem no
futuro o suficiente para encontrar a extremidade, o fim do barbante como o
inventor de seu romance havia tentado fazer? Mas existiria tal coisa? O tempo
terminaria em algum ponto ou continuaria eternamente? Neste caso, o final devia
localizar-se no instante em que o homem se extinguisse e não restasse
nenhuma outra espécie no planeta, pois o
que era o tempo sem ninguém para medi-lo, sem nada que o acusasse sua passagem?
O tempo só se revelava nas folhas secas, nas feridas que cicatrizavam, no
caruncho que devorava, na ferrugem que se espalhava, nos corações que se
cansavam. Se não houvesse ninguém para mareá-lo, o tempo não era nada, absolutamente
nada.
...
Definitivamente, se queria ser um escritor brilhante, e não apenas um narrador
competente e engenhoso, precisava exigir
de si mesmo esforços maiores que aquelas fabulazinhas que executava em quatro
dias. Sim, a literatura era mais, muito mais. A verdadeira literatura precisava
mexer com o leitor, alterá-lo, mudar sua percepção das coisas, empurrá-lo pelas
escarpas da clarividência.
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